Hesitei
em escrever sobre o assassinato de Michael Brown, em Ferguson, no estado
estadunidense do Missouri, no ultimo dia 9 de agosto. Não há nada de novo nas imagens televisivas de
um joven negro de 18 anos abatido a
tiros nas ruas de uma cidade onde quer que seja. Afinal, enquanto Brown era assassinado em
Ferguson, no sul do continente outros
jovens negros encontravam a morte nas mãos da polícia militar. Do outro lado do Atlantico, a comunidade
negra relembrava o Massacre de Marikana, quando em 16 de agosto de 2012 a
polícia sul-africana assassinou a 34 trabalhadores negros que protestavam por
melhores salarios. Estas e tantas outras
mortes que ainda virão são a reiteração de uma “verdade racial” que não deixa
dúvidas sobre o lugar do corpo negro em
“nossas” sociedades.
Talvez tenha sido Franz Fanon quem tenha melhor articulado
em palavras a impossibilidade negra no mundo social. Para ele, nós negras e
negros habitamos uma zona chamada “a zona do não-ser”. Somos, por assim dizer, civilmente/socialmente
mortos e é essa morte ontológica (a impossibilidade de sermos reconhecidos/as
como parte da comunidade humana) o que
faz possível a existencia civil branca. Não
é estranho, portanto, que a solidariedade na luta anti-racista quase sempre desvala
na impossibilidade branca de pensar no que Fanon chamou de “exclusividade
recípocra”. Em suas palavras: “não é possivel reconciliação porque, dos dois
termos [o branco e o negro] um é supérfluo” (1963, 39). Qual?
Deixo
para outra ocasião a questão da cumplicidade branca com a morte negra (um
incisivo campo teórico – me vem a mente o inovador trabalho de Lourenco Cardoso
- tem se ocupado disso mostrando como os brancos lucram com suas identidades) para
me ater em um outro aspecto: a (im)possibilidade de resistir a violência do/no estado racial. Desde o sábado
quando Michael Brown foi assassinado, os Estados Unidos têm registrado uma série de revoltas urbanas
que lembram os protestos “violentos” de Los Angeles, em 1992, quando as cameras
de video flagraram policiais espancando um joven negro nos suburbios da
cidade. As revoltas nas cidades
estadunidenses são um lembrete da ausência de
espaco político para a questão negra dentro da chamada sociedade civil. Os
canais tradicionais de manifestação aquí e lá não dão conta de responder ãos
desafíos das gentes negras. Na verdade, eles parecem parte do problema. Neste
sentido, os protestos pacíficos dos brancos progresistas, e daqueles negros que
conseguiram um “lugar” ão sol, se contrastam com as furiosas demonstrações de
“basta” de uma juventude encurralada nos guetos estadunidenses.
Aquí
o outro lado da América pós-raça de Barack Obama: são pelo menos 2 milhoes de
pessoas encarceradas. Em muitos dos
suburbios das cidades estadunidenses, há mais homens negros encarcerados do que
nas universidades. As projeções mais otimistas dão conta de que em 2020 pelo
menos 1 de cada 4 jovens negros estarão atrás das grades. Segundo o National Poverty Center, pelo menos
15% dos estadunidenses estão na pobreza
e, de acordo com o Departamento do Trabalho dos EUA, a taxa de desemprego entre os negros é de
11,4% (contra 6,2% da população em geral). Desnecessário dizer que a condição
negra nos EUA reflete a situação em que se encontram os negros no Brasil, na
Colombia, na Africa do Sul, no mundo.
Aquí entre nós, a polícia mata em
proporções semelhantes a policía sul-africana no período do apartheid; como na
Colombia, as mulheres negras ocupam o
mesmo lugar do periodo colonial, na cozinha dos senhores brancos; as nossas favelas são um espelho do regime de
segregação racial sul-africano e estadunidense.
Em todos estes lugares, o corpo negro habita uma zona mortal e, quando as balas da polícia o atingem, sua eliminação física é “apenas” a reiteração de
mútliplas mortes (física,
simbólica, ontológica). É possível concebermos
a idéia de alguém morrer várias vezes? O
que o assassinato de Michael Brown, Travin Martin, Claudia Ferreira, Amarildo
Silva e tantos outros nos lembra é que a morte negra não é tragédia. Ela carece
de um registro político para ser considerada como tal. Nem o Estado nem a
sociedade civil podem nos ajudar nesse “registro” porque ambos fazem parte de um
projeto racial que requer uma guerra permanente contra nós negras e negros. É
neste sentido que se tornam ridículos os
termos do nosso debate (me incluo aquí) em torno de figuras negras que buscam
salvar a República e extirpar os defeitos de nascença do estado, como se o corpo
negro que ocupa tais espacos deixasse de ser lido a partir do registro da negação
ontológica. Onde residiria a possibilidade de resistência para quem lhe é negada a possibilidade de ser? Existe, de fato, possibilidade de politizar a
morte negra se a morte negra não ganha, perante a sociedade civil, o estatus de
assassinato?
Como
fica visível nas manifestações que tomam as cidades estadunidenses agora, que explodiram nos suburbios de Paris em
2005, no bairro de Soweto, em 2012, e seguem nos levantes da juventude negra
Brasil afora, a politização da morte negra só é possível a partir de uma
prática radical autónoma. A morte negra cria condições de possibilidades para
uma comunidade política constituida na violencia legítima, na dor e na raiva.
Como nos lembra João Costa Vargas , a diáspora africana é uma supra-geografia
da violencia e da resistencia, um espaco do genocidio negro e da rebelião
permanente. Oxalá estas e tantas outras mortes sejam, entao, semente de uma
comunidade política em que negras e negros, aquí e lá, se sintam responsáveis pela
vida de cada um/a e de todos. Ferguson,
Capão Redondo, Soweto, Aguablanca
……. Presente!
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