28 de abr. de 2010

Facismo social e violência cotidiana na Pérola do Atlântico

Jaime Amparo-Alves*

Quem conhece a geografia do Guarujá, sabe que a cidade, vista de cima, tem o formato de um dragão. O que o turista desavisado, que chega pela rodovia Piaçaguera e se hospeda na orla marítima, não sabe é que o dragão mitológico que dá forma à Ilha pode ser também uma metáfora das condições cruéis de existência dos milhares de miseráveis que sobrevivem nas encostas dos morros ou nos manguezais que abrigam as mais de setenta favelas do município.

Sob todos os ângulos, Guarujá é um desastre ambiental e humano. Mais do que isso, a cidade é uma metáfora do Brasil cindido, fraturado, dividido. Talvez em nenhum outro lugar o abismo social entre brancos e negros, ricos e pobres assuma uma dimensão tão profunda e tão cruel.

Isolados da cidade formal, os pobres sobrevivem graças à teimosia. Andam sob duas rodas porque o transporte coletivo tem preço exorbitante e é monopólio autorizado pelo poder público; vivem nas áreas de risco porque as áreas nobres são propriedade dos turistas ou da elite local; morrem nas filas das policlínicas porque o único hospital que atende pelo SUS está afundado em dívidas. Em Guarujá, nada é absurdo. Até mesmo as praias têm dono. Por iniciativa oficial, os turistas de um dia – aqueles que são vítimas da mesma elite cínica que desce a serra para humilhar os pobres de lá – são impedidos de entrar na cidade. “É que são farofeiros e só trazem problemas para o município”, me diz um amigo.

Não há nada de novo na atual onda de violência que aterroriza os turistas e dá o combustível para a paranóia moral da mídia sensacionalista. Se entendermos a violência como um fenômeno social multifacetado - e não apenas como um ato isolado que tem no homicídio sua manifestação total - veremos que no Guarujá as suas vítimas preferenciais têm sido historicamente os pobres e negros. Para eles, as violências em suas formas física, estrutural e simbólica têm sido uma realidade cotidiana.

O problema do Guarujá não se resolverá com políticas de segurança pública militarizada que têm como filosofia a eliminação dos cidadãos ‘indesejáveis’, como nos quer fazer crer a filosofia do medo disseminada pela mídia. O problema ali é que a cidade tem Estado penal demais e estado social de menos. Na verdade, a polícia tem sido a única política pública para a juventude negra e pobre segregada nos morros e mangues da Pérola do Atlântico. São eles, os jovens negros e pobres, os alvos preferenciais das políticas de tolerância zero que antecedem os feriados prolongados e as temporadas de férias. A palavra de ordem é “tirar de circulação” para que os turistas possam desfrutar a cidade em ‘paz’. A paz para quem?

O principal combustível da atual onda de violência no município não é o PCC, mas sim o fascismo social que divide a cidade entre os bons e os maus, os cidadãos de 1ª, 2ª e 3ª categoria, os do morro e os do asfalto, os dos barracos e os dos condomínios fechados, os sem teto e os donos das praias públicas. Os policiais militares, ainda que queiram, não poderão resolver o que o poder público insiste em esconder debaixo do tapete: o terreno fértil das desigualdades estruturais.

Mas a elite guarujaense pode ficar sossegada. Este não é o fim do mundo para os seus negócios. Até a temporada de férias, o turista terá esquecido o drama dos miseráveis que fazem a cidade e terá chegado com seus dólares. Andando na orla ou no restaurante de um luxuoso hotel que ocupa o espaço público na praia da enseada, uma elite cínica e perversa desfilará charme e crueldade no seu exercício predileto de humilhar os pobres. A violência que hoje assusta terá ficado para trás.

Enquanto isso, ali no alto do morro da Vila Bahiana, à altura da Rua Colômbia, uma pedra gigante teima em anunciar uma outra tragédia iminente. Fecho os olhos e vejo corpos esmagados. Mas isso não tira o sono de ninguém. Buon Appetito!

*jornalista e pesquisador pela Universidade do Texas, em Austin

15 de abr. de 2010

O Haiti nosso de cada dia

Rio: um desastre humano e ambiental
Certamente você viu pela TV a tragédia que assolou o Rio de Janeiro. O que a mídia não mostrou foi a cor dos mortos. Afinal, 80% dos moradores das favelas cariocas são negros - a propósito, o mesmo padrão de segregação residencial que se repete nos morros de Salvador, nos mangues de Recife ou na hiper-periferia paulistana. A população negra da ‘cidade maravilhosa’ contou e continua sepultando suas vítimas. A culpa é da natureza, dizem os papagaios e cães-de-guarda do Cidadão Kane. Como no Haiti, desnaturalizar o desastre é a nossa tarefa! Afinal,a tragédia já faz parte da nossa experiência e será só questão de dias para sua repetição. Em alguma encosta, uma mãe negra perde o sono sempre que começa a chover....ou quando a polícia sobe o morro.