22 de set. de 2014

Fúlvia Rosemberg: Honrar a vida e reafirmar a luta!




A academia brasileira perde uma das suas mais brilhantes mentes. A luta pela democratização do acesso à universidade pública perde uma lutadora incansável e nós do Programa Bolsa, perdemos nossa maior aliada politica. O mundo fica mais pobre sem Fúlvia Rosemberg e não há homenagem à altura da sua história. 

Queria escrever um texto diferente, homenageando a Fulvia em vida. Ela iria reclamar da minha homenagem, mas essa história de escrever texto post-mortem enche o saco ainda mais, estou certo que diria. O diabo é que, apesar da morte estar escrita em edital, como diria Guimarães Rosa, ela é uma tragédia quando a vida é arrancada de nossas mãos. Fulvia tinha muitos planos de inclusão das gentes negras e indígenas no ensino superior.

Daí porque sua morte repentina deixa um vazio ainda maior. Meu relato pessoal é uma tentativa desesperada de fazer sentido da sua ausência.
A última vez que enchi sua paciência foi em 2012 quando o MEC estava desenhando uma proposta de ações afirmativas para o mestrado. A Fúlvia ofereceu sua experiência intermediando um diálogo com a gente da militancia e a assessoria do ministro da Educação para nascer uma experiência que imita o Programa Equidades, da FCC/Fundação Ford.
Nossa Fulvia em um dos inumeros debates pelas cotas raciais

Fúlvia não apenas acreditava na diversidade como um imperativo ético-moral, para além das pesquisas acadêmicas. Ela também acreditava na mudança de paradigmas produzida por nossa presença nos espaços tradicionalmente brancos de produção de conhecimento. Nesse sentido, ela era incansável em chamar a atenção para que fôssemos “ousados” e aproveitássemos o que o programa tem a oferecer. No último encontro dos/das bolsistas em São Paulo do qual participei, Fúlvia demonstrou preocupação com uma certa inércia em defender o programa, investigar seus impactos, produzir conhecimento sobre a experiência singular do maior programa de ações afirmativas no Brasil. Ela dizia, por exemplo, que apesar de um banco de dados extraordinário, poucos bolsistas havia feito análises sobre o programa. 

Minha dor maior é não poder mais contar com a generosidade acadêmica

e a crítica honesta
da Fúlvia, artigos de luxo em um mundo acadêmico marcado pela competitividade doentia e a insegurança predatória. Fúlvia não hesitava em compartilhar ideias, em discutir detalhes, em pedir prudência com publicações imaturas. “Ser ousados e ter senso da realidade”, dizia. Deveríamos nos lançar ao mar, mas ter consciência de que os olhos do mundo estavam sobre nós e sobre o programa. Minha experiência pessoal: briguei com a Fulvia por não ter um artigo aprovado para a coletânea do Programa Bolsa. Esperneei, disse que tinha posto muito trabalho ali, disse os-do-fim. Fúlvia brigou, retrucou e depois me assegurou: Jaime, nesse momento em que os olhos da elite conservadora estão sobre o programa bolsa, é preciso ser mais criterioso, revisar, revisar e revisar. Ela estava certa e oxalá tivera seguido seus conselhos um pouco antes. Ah, Fúlvia!

Mas a Fúlvia também estava lá quando a coisa ficava feia. No auge dos ataques do PCC, em 2006, desde os Estados Unidos eu escrevi um texto jornalistico argumentando que os ataques eram uma violência legítima de uma população carcerária massacrada pelo Estado penal. Houve quem, do alto de sua posição de professor acadêmico de uma certa antropologia carioca, ligasse para a Fulvia e para o escritório da Ford em Nova York para reclamar do meu incitamento a violência. Fulvia apagou o incêndio e salvou minha bolsa.

Devemos a Fúlvia Rosemberg uma homenagem por sua investigação pioneira sobre a escola como lócus de produção das desigualdades raciais e de gênero, por sua agenda feminista, por seu papel fundamental na luta pela igualdade de direitos e de oportunidades na pós-graduação brasileira, por aceitar os ossos do ofício em um programa sob permanente ataque do lado de cá e do lado de lá. Honrar a vida da Fúlvia é aceitar a generosidade acadêmica como princípio político e não perder de vista a nossa responsabilidade com quem vem por aí. Reconhecendo a sua aposta política em um programa de intervenção estratégica com impacto ainda por ser mensurado, eu me permito estar doído e zangado com a Fúlvia. Sim, a morte está escrita em edital, mas não era esse o script nem era o tempo. Fúlvia Rosemberg, presente!

Jaime A Alves