A academia brasileira perde uma das suas mais brilhantes mentes. A luta pela democratização do
acesso à universidade pública perde uma lutadora incansável e nós do Programa
Bolsa, perdemos nossa maior aliada politica. O mundo fica mais pobre sem Fúlvia
Rosemberg e não há homenagem à altura da sua história.
Queria escrever um texto
diferente, homenageando a Fulvia em vida. Ela iria reclamar da minha
homenagem, mas essa história de escrever texto post-mortem enche o saco ainda mais, estou certo que diria. O diabo é que, apesar da morte
estar escrita em edital, como diria Guimarães Rosa, ela é uma tragédia quando a
vida é arrancada de nossas mãos. Fulvia tinha muitos planos de inclusão das
gentes negras e indígenas no ensino superior.
Daí porque sua morte repentina deixa um vazio ainda maior. Meu relato pessoal é uma tentativa desesperada de fazer sentido da sua ausência.
A última vez que enchi sua
paciência foi em 2012 quando o MEC estava desenhando uma proposta de ações afirmativas
para o mestrado. A Fúlvia ofereceu sua experiência intermediando um diálogo com
a gente da militancia e a assessoria do ministro da Educação para nascer uma experiência que
imita o Programa Equidades, da FCC/Fundação Ford.
Fúlvia
não apenas acreditava na diversidade como um imperativo ético-moral, para além das
pesquisas acadêmicas. Ela também acreditava na mudança de paradigmas produzida
por nossa presença nos espaços tradicionalmente brancos de produção de
conhecimento. Nesse sentido, ela era incansável em chamar a atenção para que fôssemos
“ousados” e aproveitássemos o que o programa tem a oferecer. No último encontro
dos/das bolsistas em São Paulo do qual participei, Fúlvia demonstrou preocupação
com uma certa inércia em defender o programa, investigar seus
impactos, produzir conhecimento sobre a experiência singular do maior programa
de ações afirmativas no Brasil. Ela dizia, por exemplo, que apesar de um banco
de dados extraordinário, poucos bolsistas havia feito análises sobre o
programa.
Minha
dor maior é não poder mais contar com a generosidade acadêmica
e a crítica honesta
da Fúlvia, artigos de luxo em um mundo acadêmico marcado pela competitividade doentia e a
insegurança predatória. Fúlvia não hesitava em compartilhar ideias, em discutir
detalhes, em pedir prudência com publicações imaturas. “Ser ousados e ter senso
da realidade”, dizia. Deveríamos nos lançar ao mar, mas ter consciência de que
os olhos do mundo estavam sobre nós e sobre o programa. Minha experiência
pessoal: briguei com a Fulvia por não ter um artigo aprovado para a coletânea
do Programa Bolsa. Esperneei, disse que tinha posto muito trabalho ali, disse
os-do-fim. Fúlvia brigou, retrucou e depois me assegurou: Jaime, nesse momento em
que os olhos da elite conservadora estão sobre o programa bolsa, é preciso ser
mais criterioso, revisar, revisar e revisar. Ela estava certa e oxalá tivera
seguido seus conselhos um pouco antes. Ah, Fúlvia!
Mas
a Fúlvia também estava lá quando a coisa ficava feia. No auge dos ataques do
PCC, em 2006, desde os Estados Unidos eu escrevi um texto jornalistico argumentando que os
ataques eram uma violência legítima de uma população carcerária massacrada pelo
Estado penal. Houve quem, do alto de sua posição de professor acadêmico de uma
certa antropologia carioca, ligasse para a Fulvia e para o escritório da Ford
em Nova York para reclamar do meu incitamento a violência. Fulvia apagou o incêndio
e salvou minha bolsa.
Devemos
a Fúlvia Rosemberg uma homenagem por sua investigação pioneira sobre a escola
como lócus de produção das desigualdades raciais e de gênero, por sua agenda
feminista, por seu papel fundamental na luta pela igualdade de direitos e de
oportunidades na pós-graduação brasileira, por aceitar os ossos do ofício em um
programa sob permanente ataque do lado de cá e do lado de lá. Honrar a vida da
Fúlvia é aceitar a generosidade acadêmica como princípio político e não perder
de vista a nossa responsabilidade com quem vem por aí. Reconhecendo a sua
aposta política em um programa de intervenção estratégica com impacto ainda por
ser mensurado, eu me permito estar doído e zangado com a Fúlvia. Sim, a morte
está escrita em edital, mas não era esse o script nem era o tempo. Fúlvia
Rosemberg, presente!
Jaime
A Alves
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