30 de nov. de 2015

Globo, Belíndia e Belgiquistão: a arte de mascarar a sub-cidadania

Por Laura Lima*

Um dos maiores orgulhos que tenho é ter deixado de assistir a Rede Globo ainda na adolescência. Nos quase vinte anos que se passaram desde então, tive apenas uma reincidência: o discurso de posse de Lula em 2003. Na última segunda-feira quebrei esse jejum para ver (online) a reportagem sobre Molenbeek que foi ao ar no Fantástico do último domingo. Vivo na Europa há cerca de 10 anos, seis do quais na capital belga. Me senti na obrigação de ver o que a Globo tinha a dizer sobre um dos bairros que mais conheço na cidade. Foi quase um exercício de auto-flagelação: um sofrimento desnecessário, masoquismo ao raiar do dia.

Entre tantas coisas, a globo colocou Molenbeek como ninho do terror e finalizou a reportagem falando em “Belgiquistão”. Imediatamente, isso me trouxe a lembrança uma moda nas rodas intelectuais dos anos 90/2000 sobre o Brasil. Falávamos de Belíndia. No fundo, o intuito do termo era realçar que, no Brasil, haviam duas realidades que conviviam lado-a-lado. Uma delas, diminuta, apresentava os mesmos indicadores de desenvolvimento humano que a Bélgica. Enquanto que havia entre nós também indicadores iguais aos da Índia. Apesar de tentar descrever a gritante desigualdade brasileira, o termo em si é impregnado de uma armadilha política.

É que Belíndia nos diz muito o que nós, brasileiros, pensávamos sobre a Bélgica e sobre a Índia. Pressupõe-se que a Bélgica e a Índia são, nessa ordem, os bastiões do desenvolvimento e do subdesenvolvimento humano, quando na verdade sabemos que em qualquer país há privilegiados e excluídos. Basta ver os 7.5 milhões de anafabetos funcionais na força de trabalho alemã, os 22% de criancas vivendo abaixo da linha da pobreza no Estados Unidos, o 1% da população indiana que detém 53% da riqueza nacional, ou os 10% dos paquistaneses que juntos detém 27% do PIB nacional. Embora esteriótipos reforcem nossa visão de países como um todo homogêneo, não há nada sobre a vida e a morte em qualquer um deles que nos dê qualquer pista de uniformidade.

Da mesma forma, chamar Molenbeek de Belgiquistão é uma preguiça acadêmica e, principalmente, uma maldade política. Maldade política em dois atos. Primeiro, porque, como a última semana mostrou, nem tudo é flores no Reino da Bélgica e nem tudo é morte da República Islâmica do Paquistão. Segundo, é também uma maldade política porque invisibiliza os processos de exclusão que permitem que, em qualquer país, pessoas sejam relegadas a uma vida precária. A sede, a fome, a falta de moradia, de escolas, de hospitais e, acima de tudo, de dignidade humana, são fenômenos políticos e históricos, que devem ser desvendados, explicados e combatidos independentemente de onde eles ocorram. Chamar Molenbeek de Belgiquistão é simplesmente negligenciar os quase 100 mil moradores do bairro que não só não compactuam com a violência armada mas que também contribuem enormemente para Bruxelas ser a segunda cidade mais cosmopolita do mundo. Chamar Molenbeek de Belgiquistao é estigmatizar ainda mais uma parcela da população que já vive de ser o bode expiatório de todas a políticas anti-imigração.

O ninho de terror do qual falou a globo oferece escolas públicas para todas as suas crianças (meus afilhados estudam lá e os pais – brancos, classe média, e flamengos – são muito contentes com o ensino), plano de saúde de qualidade e vários tipos de ação social que coloca até mesmo outros países da União Européia no pé do chinelo. Mesmo com tudo de bom que esse país tem a oferecer (e não são poucas coisas), a Bélgica também tem seus problemas. E o problema atual de Molenbeek está muito conectado às políticas de imigração adotadas pela Bélgica nos anos 60 e 70.

Os contingentes migratórios que chegaram a Bélgica desde a década de 1960, eram em grande parte comunidades norte-africanas (geralmente francófonas) ou de países árabes. Vieram aos milhares. E, enquanto ocuparam a vaga de mão de obra barata, ninguém reclamava. Não houve, por parte do governo ou dos cidadãos, uma política ampla de educação e integração social, econômica e/ou política. As segundas e terceiras gerações, nascidas e criadas na Bélgica, muitas sem ter nunca visto seu país de ‘origem’, nunca foram (e ainda não são) tratados como belgas. São sub-cidadãos. Suas religiões e suas culturas sempre foram muito mais toleradas do que celebradas. Desde que ficasse cada um no seu quadrado, estava tudo bem. E foi assim que Molenbeek foi se transformando no que é hoje: uma área de belgas não-belgas, onde a polícia não vai, em quem a cidade (e o país) investe muito menos, e o estado está presente muito mais timidamente do que em outros bairros. Essa vaga de cidadania e falta de identidade com o país onde nasceram, abriu a oportunidade para que o fundamentalismo religioso conseguisse arregimentar jovens para o terrorismo.

Se a reportagem do fantástico tivesse se esforçado um pouquinho mais para conhecer a realidade do bairro, saberia que o que o caracteriza é muito mais o número de pessoas que ali vivem em situação precária do que a religião ou a língua que falam. O desemprego em Molenbeek é em torno de 30%, e entre os jovens esse número chega a quase 40%. A taxa de desemprego entre as mulheres é 10% mais elevada naquele bairro do que a média da região de Bruxelas. Somente na última década, a população de Molenbeek cresceu em 24.5% – em um bairro que já é conhecido por ser super-populoso.

A situação só tem piorado desde que a Bélgica vem se rendendo aos devaneios do neoliberalismo. E é contra os sub-cidadãos belgas que se viram as políticas econômicas, financeiras e de imigração nesse país. A cada golpe contra o Estado de Bem-Estar Social, o sofrimento é sentido diretamente na parcela dos sub-cidadãos. O desemprego é apenas um deles. A direita belga não quer acabar com a escola publica, a saúde pública ou a segurança social. Mas quer esses sistemas fora do alcance dos estrangeiros (ou não-brancos, como preferir). E deliberadamente escolhe investir menos nas escolas que ficam em comunas como a de Molenbeek – onde as pessoas ganham menos e precisam mais dos insumos que uma boa educação pode produzir.

A Bélgica que tenho orgulho, aquela do Bem-estar social, o país que é 95% sindicalizado, e a educação é ampla e gratuita, escolheu nas, últimas décadas, não investir em Molenbeek. As escolhas neoliberais que o país tem tomado nas últimas décadas precarizam mais ainda a vida de milhares de cidadãos (que nunca foram reconhecidos como tal). Junte-se a isso todos os problemas, muito conhecidos por nós, fomentados em um ambiente de pobreza, desemprego, investimento mínimo em saúde e educação.

Há muitos problemas em Molenbeek. Mas o maior deles não é, nem de longe, o terrorismo. O terrorismo é uma consequência de décadas de escolhas politicas e econômicas que distinguem entre os belgas brancos e os contingentes de imigração. Chamar Molenbeek de Belgiquistao é ignorar as décadas em que a população do bairro não teve acesso as políticas sociais disponíveis em outras áreas do país. Chamar Molenbeek de Belgiquistao é esquecer que há um sistema de exclusão internacional que é ordenado e oficializado dentro de fronteiras nacionais, seja na Europa ou em qualquer outro continente. A reportagem do domingo passado na Globo só conseguiu provar o que tantos de nós sabemos sobre a emissora no panorama nacional: sua visão e parcial, míope que age contra o bem comum.

 * Laura Lima é doutora em ciência política e representante das Nações Unidas para assuntos urbanos – Programa Cities Alliance