17 de jun. de 2010

Ouro de tolos: O Estatuto da Igualdade Racial e a submissão política negra II

Por Jaime Alves


O Senado Federal aprovou no último dia 16 de junho a versão demostiniana do Estatuto da Igualdade Racial. Trata-se de um texto indigesto apenas palatável para aquela fatia minúscula do movimento negro que, protegida pelo manto clerical ou de olho em alguns dividendos para as eleições 2010, se submete (e a todos nós) a um constrangimento histórico. Depois de dez anos de luta, e para salvar algumas plataformas político-partidárias no apagar das luzes, um acórdão retirou as propostas mais substanciais do documento como: a reserva de vagas nas universidades públicas, as políticas de saúde específicas para a comunidade negra e a demarcação das terras quilombolas. Os três tópicos em si já representam a bandeira de lutas mais significativa do movimento negro porque elas são resultado de um acumulado histórico de reivindicações. Em nome de quem a meia dúzia de gatos pingados endossou tão indecente proposta? A quem interessa um Estatuto que já nasce morto? O que a aprovação do Estatuto light tem a nos dizer sobre os processos de submissão política negra nos últimos anos? Por que a pressa em aprovar um Estatuto vazio de propostas?


Sem querer generalizar a experiência pessoal para o conjunto dos movimentos negros, aqui vai um palpite: nos últimos oito anos, militando em um modelo de movimento onguista ‘particular’ em São Paulo, “aprendi” que agora é hora de negociar, que a história chegou ao fim, que já não há espaço para sustentar um projeto radical de transformação social, de que a palavra de ordem agora é ocupar menos a rua e fazer mais lobby político nos bastidores do poder, que ao invés das ruas, devemos ocupar a ponte aérea, os gabinetes. Aprendi que a palavra ‘raça’ deve ser retirada do vocabulário e ser substituída pelo eufemismo ‘diversidade’, que a palavra ‘reparação’ ou ‘justiça racial’ dever ser substituída pela mais palatável ‘igualdade racial’.


É neste contexto de pobreza da imaginação política que a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial deve ser entendido. A palavra “radical” em certos círculos tomou uma conotação tão estranha e tão vazia de significados que soa com a mesma intensidade da palavra comunista no período da guerra-fria. Isso para não falar na palavra “utopia”, utopia negra, vista como um sacrilégio. E olhe que não falo de utopia como ideal irrealizável, mas como sonho e luta de transformação radical para deslocar as bases de poder na nossa sociedade.


Pois bem, da maneira como foi aprovado, o Estatuto representa uma carta de intenções genéricas que diz pouco ou quase nada sobre a luta do povo negro, mas que diz muito sobre o momento histórico em que vivemos. No entanto, o que mais me angustia no Estatuto aprovado não é o corte do senador Demóstenes Torres (ex-PFL-GO). O senador fala de um lugar racialmente privilegiado e incorrigível. Está defendendo os interesses do seu grupo. E disso não há duvida!


O que assusta é que, em um momento de refluxo c da luta social, em um momento em que os movimentos sociais da cidade e do campo sofrem uma aprofunda criminalização, quando intensifica o massacre da juventude negra nas periferias urbanas, algumas ‘lideranças’ – supostamente inspiradas por Zumbi e pelo espírito santo – endossam uma proposta indecente como a que agora temos. Admito que talvez eu esteja deprimido e admito que estar deprimido é um privilégio quando tantos estão sobrevivendo no inferno. Mas talvez devêssemos nos perguntar: por que a recusa fatalista da utopia negra? Em nome de quem o Estatuto foi negociado? Não em meu nome!