7 de dez. de 2010

A morte dos maus: uma nova etapa na biopolítica racial brasileira

Jaime Amparo-Alves

Quando a bola começar a rolar na Copa do Mundo em 2014, aqui no Brasil, os atletas talvez não imaginem o rastro de sangue necessário para fazer do evento uma realidade possível. A violência terá sido, então, sanitarizada com o verde-amarelo e a estética do horror já terá sido varrida para os cemitérios. Debaixo da terra nem a putrefação dos cadáveres negros que pavimentaram o caminho para o Brasil colocar a sexta estrela na camisa canarinho. Hexa!

Não é exagero: a reestruturação urbana das metrópoles brasileiras requer a remoção em massa tanto das residências quanto dos corpos negros. Em São Paulo, o processo já segue a passos largos. A região central da cidade deve ser o foco de uma política de intervenção higienista estratégica nos próximos anos. Sob a justificativa do combate ao tráfico, já se desenha para ali o estrangulamento do que restou do viver urbano das famílias pobres no centro velho.

Ainda na cidade, se tornam cada vez mais comuns os incêndios inexplicáveis de favelas em áreas estratégicas para investimentos imobiliários. Os incêndios, na verdade, "surgem" como saída providencial para o poder público, para o chamado terceiro setor e para o mercado. Enquanto os primeiros precisam apenas gerenciar a assistência, ao último se abre uma nova fronteira de acumulação/especulação imobiliária. Na hiper-periferia paulistana, por sua vez, a PM já celebra, quatro anos antes dos jogos esportivos, o recorde absoluto no número de blitz e prisões.

Uma nova economia da violência

No Rio de Janeiro, terra dos capítulos da tragédia estatal, o caveirão faz parte, há tempos, da geografia racializada da cidade (assim como o Blaser da Rota se confunde com o cinza da tragédia urbana paulistana). Os mais recentes "confrontos" são apenas um ensaio do que vem por aí nos anos que precedem os dois megaeventos esportivos. Como demonstrado na filosofia dos "choques de ordem" da prefeitura do Rio, é preciso pavimentar o caminho para garantir a circulação do capital e das "pessoas de bem" na Cidade Maravilhosa.

A duras penas aprendemos que o espaço urbano é uma categoria política que ambienta modos de dominação. É nele que se materializam as concepções que temos de raça, de classe, de região de origem. Neste sentido, os malvados, os perversos, os sujos habitam regiões que precisam ser extirpadas para evitar a metástase, como nos lembra o jornalismo lombrosiano do momento. No que diz respeito à circulação do capital, é imperativo que o Estado penal seja levado à sua potência máxima (na equação prisão e morte) e o pouco que resta de políticas sociais seja distribuído nem mais nem menos do que o necessário para garantir a conformidade com a ordem. Não por acaso, as UPPs (RJ) e as Polícias Comunitárias (SP) coexistem com o assistencialismo estatal e as estratégias pedagógicas de cidadania do onguismo. Afinal, é preciso manter o Haiti (de ontem ou de hoje) longe daqui.

Embora a nova ordem urbanística que vem por aí apenas reatualize os já conhecidos padrões de terror estatal – o massacre do corpo negro nas favelas como condição imprescindível para a paz social –, ela em certa medida também inaugura uma nova economia da violência que tem no espetáculo esportivo sua razão de ser. Foi assim na África do Sul e será assim no Brasil.

Vem aí a paz dos cemitérios

Como justificar a morte de jovens negros, o encarceramento em massa, a remoção de comunidades inteiras senão pela lógica da purificação total? Essa coisa chamada "sociedade civil" precisa – e a retórica da guerra fartamente disseminada pelo jornalismo criminoso sustenta – que alguns grupos sejam sacrificados em nome da nação verde-amarela.

O paradoxo aqui, como nos lembra o filósofo italiano Giorgio Agamben (1942) é que ser sacrificado não é um privilégio para qualquer um. Como no sacrifício bíblico de Isaac, o valor do ritual está na preciosidade (humanidade) do ser sacrificado. No caso dos jovens negros, encurralados entre a prisão e o cemitério, a morte se transformou em um evento ordinário, parte do viver urbano. Aqui, a retórica dos "direitos humanos", da "democracia" e do "Estado de Direito" não faz sentido porque os "maus" têm que morrer. Ao tempo em que a maldade ganha realce nas lentes das câmeras de TV e nos discursos macabros dos comentaristas de segurança, uma espécie de jornalismo cruel que tem a polícia como única fonte legitima o massacre como estratégia legal: "32 bandidos mortos em confronto com a polícia do Rio; bandido reage e é morto pela polícia em São Paulo"...

É por isso que a histeria intelectual-academicista-onguista, segundo a qual o Estado de Direito estaria ameaçado (pelo estado de exceção) só faz sentido se tomada sob a ótica daqueles grupos sociais vistos como portadores de direitos. Para os não-cidadãos, os "maus", até mesmo o conceito de estado de exceção, proposto por Agamben, precisa de um reparo, uma vez que esta tem sido a norma sob a qual (sobre)vivem. Mais apropriado seria chamar o momento sempre-presente de estado de exceção permanente!

A Copa 2014 e as Olimpíadas de 2016 serão eventos espetaculares, o país receberá enxurradas de dólares e as metrópoles brasileiras terão finalmente sido sanitarizadas. Pessimismo? Vem aí a paz dos cemitérios! Está inaugurada uma nova etapa na biopolítica racial brasileira!

*Originalmente publicado em www.observatoriodaimprensa.com.br

18 de out. de 2010

14 de out. de 2010

Dilma ainda lá!

Por Juarez Guimarães*
13 de outubro de 2010

Por que houve uma inflexão no crescimento de Dilma e o contrário ocorreu com Serra e Marina? Por Juarez Guimarães. Foto: Roberto Stuckert Filho

Por Juarez Guimarães*

Não se deve nem é preciso confiar nos números da primeira pesquisa do Datafolha no segundo turno para se concluir que o favoritismo de Dilma está sob disputa e que sua vitória depende do que a sua campanha e a de seu adversário fizerem.

É preciso, pois, adquirir e partilhar com os brasileiros e brasileiras a consciência da situação dramática deste segundo turno das eleições presidenciais. O que está longe de significar um desfecho necessariamente infeliz ou trágico. Isto quer dizer simplesmente que todas as conquistas sociais e do trabalho, democráticas e de soberania nacional construídas nestes últimos oito anos estão em risco. Serra só pode vencer se a razão liberal conservadora, cobrindo um arco de interesses e vontades que vão até a intolerância mais brutal, de cores proto-fascistas, triunfar.

Sem esta consciência dramática não se pode vencer. Porque o gesto, a fala, a palavra e o sentimento estarão aquém do necessário, não terão suficiente força e capacidade de persuasão. É preciso, então, que esta consciência dramática se expresse através de uma lucidez apaixonada que faça um diagnóstico realista do desafio e proponha um caminho para vencer.

A disputa de narrativas – A melhor referência analítica destas eleições está no gráfico de curvas de tendências eleitorais, elaborado a partir de pontos médios de pesquisas publicadas ( CNT/Sensus, Vox Populi, Datafolha e Ibope), que vem sendo atualizado desde o início do ano e editado na revista CartaCapital. Elaborada pelo cientista político mais reconhecido na área e professor do Iuperj, Marcos Figueiredo, esse gráfico de curvas de tendências eleitorais apresenta duas grandes virtudes: dilui eventuais manipulações e imprecisões de pesquisas em médias do conjunto de pesquisas; permite acompanhar tendências de evolução, evitando avaliações impressionistas a cada momento.

De acordo com este gráfico de tendências eleitorais, a cena destas eleições pode se dividir em duas até agora: até os inícios de setembro e dos inícios de setembro até aqui. Em síntese, este gráfico nos diz o seguinte: até os inícios de setembro, Dilma Roussef vinha em um crescimento sustentado e amplamente majoritário, com Serra caindo para cerca de ¼ do eleitorado e Marina Silva sempre abaixo de 10 %; desde então, Dilma parou de crescer,estacionou durante um tempo, deu indicações de uma queda leve para, na véspera das eleições, perder alguns pontos que a levaram ao segundo turno; neste mesmo período, Serra deixou de cair e começou lentamente a subir até atingir quase um terço dos votos úteis e Marina começou a indicar tendências de crescimento, para, em seguida, disparar até 1/5 dos votos úteis nos dias finais do primeiro turno.

O que ocorreu? O que divide um período do outro? Por que houve uma inflexão no crescimento de Dilma e o contrário ocorreu com Serra e Marina?

Há uma explicação clara para este fenômeno. Até os inícios de setembro, predominou a narrativa da continuidade do governo Lula (“Continuar as mudanças”), que era expressa sobretudo pela transmissão da altíssima popularidade do governo Lula a Dilma, mas também pela queda de Serra e pelo caráter minoritário ou secundário da candidatura Marina. De lá para cá, veio sendo construída pela candidatura Serra, com apoio da mídia empresarial, a narrativa liberal-conservadora anti-petista e centrada em toda sorte de preconceitos e calúnias contra Dilma.

No primeiro período, que vai até inícios de setembro, a candidatura Serra estava politicamente desestabilizada: a linha do marketing político “O Brasil pode mais”, que alternava a crítica e a indiferenciação com o governo Lula, retirava votos de Serra até na sua cidadela paulista. Com caminho livre para sua ascensão, sem encontrar uma barragem de oposição, Dilma pode se alimentar do crescente conhecimento da população, ampliado pelo horário gratuito na TV, do apoio de Lula a ela.

Nos inícios de setembro, a linha dominante na campanha de Serra , então em crise aguda, mudou: ela passou claramente a adotar a estratégia proposta apor Fernando Henrique Cardoso desde o início do ano. Isto é, associar, de forma virulenta, o governo Lula, o PT e a candidatura Dilma a uma instrumentalização ilegítima do Estado, à corrupção, e às ameaças à liberdade e aos valores religiosos.

Os meios para se promover esta mudança de agenda foram a forte concentração temática diária da mídia (revistas, jornais diários e principalmente o Jornal Nacional) somado à campanha de Serra e mais uma verdadeira avalanche de calúnias na Internet. A dramatização das ameaças encarnados pelo PT e pela candidatura Dilma criou um diálogo de elevação da figura de Marina, em uma dinâmica aliada para gerar o segundo turno.

Durante todo o mês de setembro, o longo tempo disposto à candidatura Dilma praticamente ignorou esta mudança da agenda da disputa política. Seria ingênuo supor que uma candidatura recentemente apresentada já desfrutasse de uma opção de voto de todo cristalizado e definitivo. Se a denúncia do pseudo-uso inescrupuloso da Receita Federal não parece ter tido impacto imediato, ajudou a criar uma nova agenda para a campanha. Já a denúncia de lobbies dos filhos da ex-ministra Erenice certamente teve mais impacto, abrindo uma brecha que começaria a crescer. O que parece ter ocorrido é que a certeza na vitória no primeiro turno na direção da campanha de Dilma, cada vez mais em risco nas pesquisas internas mas alardeada com força por analistas, criou a insensibilidade para a mudança de agenda e clima de campanha que estava em curso.

A ascensão de Marina aos 20 % de voto útil certamente combinou fontes variadas de apoio. Mas o mais importante é compreender que ele só ocorreu em meio a este clima negativo e de suspeição em torno à candidatura Dilma.

Esta nova agenda de campanha não foi capaz de apagar a anterior, a da continuidade ou ruptura com a dinâmica de mudanças do país criada pelo governo Lula, pois Dilma manteve, apesar de tudo, um alto índice de votos no primeiro turno. Mas agiu no sentido de se impor a ela ou neutralizá-la. Se isto for realmente conseguido neste segundo turno, Serra pode vencer as eleições. Seria um erro de interpretação desvincular a “disputa de biografias” proposta por Serra desta nova agenda de campanha: pelo contrário, a sua “biografia” é apresentada, em contraponto inteiramente à de Dilma, como a de um “homem de bem”. Da mesma forma, Dilma não pode ser eficientemente defendida sem lutar pela agenda da disputa política: é a sua representação do projeto do governo Lula que pode levá-la à vitória. Nenhuma calúnia pode ser ignorada ou deixar de ser respondida mas a capacidade persuasiva da resposta depende da desmontagem da nova agenda de campanha que tem em Serra o seu epicentro.

Por isso, é preciso superar a falsa dicotomia que pode aparecer: ou centrar na “linha política” da campanha ou na “biografia da candidata”. Na verdade, as duas questões são dependentes e configuradas, pois quanto mais capacidade de retomar a linha de campanha, maior potência para construir ou reconstruir a Dilma presidenta do Brasil.

Vamos, então, exercitar as respostas às três questões:

- como retomar no centro das eleições a agenda da continuidade ou retrocesso?

- como obstaculizar o crescimento em curso da candidatura Serra?

- como retomar o crescimento da candidatura Dilma presidenta?

A retomada da agenda da campanha – A soma do acerto no programa de televisão mais a força política da coligação Dilma mais a heróica e voluntariosa militância e cidadania ativa, inclusive na rede virtual, tem capacidade para recentralizar a agenda da campanha e colocar Serra, de novo, na defensiva. Mas, para isto ocorrer, é preciso reconectar, combinar, fazer dialogar já mensagem na TV, a militância ativa e a força política da coalizão. A candidatura Serra chegou no início deste mês de outubro com a força plena de sua estratégia, continuada e expandida após a conquista do segundo turno.

A recentralização da agenda da campanha passa por quatro linhas constitutivas simultâneas. É preciso concentrar nela, repeti-la por todos os ângulos, torná-la o centro da narrativa e sintetizador de todo o discurso e ação, Implica em literalmente correr atrás do tempo perdido, criando uma dinâmica ofensiva crescente, que pode se manifestar de forma plena ao final do segundo turno.

A primeira linha visa despertar, reforçar e agudizar a consciência dos brasileiros, das classes populares e das classes médias, de que FHC e Serra são duas caras da mesma moeda, são criador e criatura, unha e carne de um mesmo projeto. FHC e Serra escreveram juntos o manifesto neoliberal de fundação do PSDB; Serra foi durante oito anos ministro de FHC e indicado por ele para sucedê-lo; hoje, FHC, escondido ou quase apagado do programa Serra, é de fato quem dirige politicamente a sua campanha. Serra eleito é a turno de FHC de volta ao governo do país.

A segunda linha objetiva despertar, reforçar, agudizar a consciência dos brasileiros, das classes populares e das classes médias, do que poderia ocorrer com volta de Serra/FHC ao governo do país. Não se trata apenas de fazer uma comparação de governos com base em números frios. Quando FHC terminou seu segundo mandato, ele tinha o repúdio ( avaliações de ruim e péssimo) de cerca de dois terços dos brasileiros. É preciso documentar, de modo dramático, com fotos e documentos o que foi o Brasil nos anos noventa para o povo e para as classes médias. O eleitor de Serra precisará, cada vez mais, esforço para defender o seu voto e a conquista de novos eleitores será cada vez mais difícil.

A terceira linha buscaria despertar, reforçar, agudizar a consciência do sentido democrático e republicano do governo Lula contraposto aos anos de apartação social e conservadorismo político dos anos FHC. É preciso superar a visada economicista, incorporando aos feitos do governo Lula, em cada área, os valores e princípios que orientaram a sua construção: democracia ativa dos cidadãos e maior pluralismo político; direitos para quem trabalha e novos direitos para os pobres; reconstrução das funções públicas do Estado, inclusive na área ecológica, e combate inédito à corrupção; novos direitos para negros e mulheres; retomada da soberania nacional e novo diálogo internacional, pela paz e contra a pobreza e pelo acordo de sustentabilidade internacional.

A quarta linha é retomar, com uma perspectiva histórica, o novo futuro do Brasil democrático e republicano que será aprofundado com Dilma presidente. Do princípio esperança para a imaginação plena de um Brasil democrático, justo, soberano e sustentável. É com a clarificação deste futuro, com suas metas para cada área, que o trabalho de reconstrução de imagem e programa de Serra pode ser mais desmascarado. É preciso iluminar a grandeza histórica do que encarna a candidatura Dilma: é o melhor caminho para reconstruir a sua imagem pública tão violentamente atacada.

Estas quatro linhas simultâneas de construção do discurso compõe juntas uma narrativa que deveria ser estruturadora dos programas de televisão, combinada com a defesa da imagem pública de Dilma.

Serra para baixo e Dilma presidente – A desconstrução de Serra e a (re) construção da imagem de Dilma são processos simultâneos e combinados.

De modo sereno, mas com a indignação necessária, o movimento de calúnias contra Dilma deve ser publicamente cobrado da campanha de direita de Serra e politicamente caracterizado como incompatível com a democracia. Não pode ser um “homem de bem” quem estimula e tira proveito das calúnias, dos preconceitos contra os pobres, do fanatismo religioso para vencer. Esta estratégia tem a sua origem nos republicanos de direita dos EUA que a usaram contra Obama que foi chamado até de amigo dos terroristas, ofendido por racistas e por pretensos mensageiros da palavra de Deus, fundamentalistas religiosos. Sem esta abordagem política ofensiva, a defesa de Dilma será confundida com um movimento apenas defensivo e até legitimador desta prática da direita.

Elas deveriam ser publicamente refutadas em quatro tipos:

- a que a acusa de ser “bandida”, assaltante de bancos, por isso vetada nos EUA. O que está em jogo aqui é o papel democrático heróico de uma geração contra a ditadura militar, fundamental para a conquista da democracia.

- a que a acusa de ser contra a vida, contra a fé e o respeito às religiões, debochando de Deus ou Cristo. O que está em jogo aqui é o sentimento generoso cristão do projeto de Dilma, o fundamento do seu amor ao próximo, o seu respeito ao valor dos sentimentos de transcendência dos brasileiros.

- a que a acusa de ser sem experiência, corrupta ou conivente com a corrupção: o que está em jogo aqui é o sentido público da vida de Dilma como gestora exemplar e o seu papel no governo que, como pode e deve se demonstrar, mais combateu a corrupção na história do Brasil.

- a que acusa de ser sem palavra ou falsa ou sem valores: o que está em jogo aqui é a coerência e integridade de toda a sua vida, da luta contra o regime militar à construção de um novo Brasil democrático no governo Lula.

Com a disputa pela narrativa de sentido, pela agenda política da polarização, tudo passa a convergir para um centro estruturado de valores, idéias e personagens e realizações, promessas de futuro ou ameaças de crise. É neste centro de disputa, capaz de dialogar com a nova consciência democrática e republicana, das classes populares e das classes médias brasileiras, que Serra será derrotado e Dilma será eleita presidenta do Brasil.

*Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e autor de “A esperança crítica”, Editora Scriptum, 2007.

1 de out. de 2010

Para quem vai o voto negro?

Por Reginaldo Bispo
Coordenador do MNU

O tratamento dispensado por deputados, senadores, partidos e governo [leia Seppir] bancando e aprovando sem luta o Estatuto da Igualdade Racial do DEM, com a oposição da maioria das lideranças e do Movimento Negro Organizado brasileiro, coloca para negras e negros uma questão essencial: Porque deveríamos dar nosso voto aqueles que agem contra nossa vontade? Porque deveríamos favorecer a criação dessa empresa pessoal que é o mandato parlamentar? Por que deveríamos eleger deputados, senadores, governadores e presidentes, se os mesmos ignoram e desprezam as condições reais de vida e direitos da população negra, pobre e trabalhadora?

-O plano Nacional de Segurança Publica dos governos Lula/Serra/PMDB/PSB/DEM/PT está promovendo um verdadeiro genocídio da juventude Negra. Em cada 04 pessoas mortas pela policia, 03 são negros e estão na faixa de 15 a 24 anos e 01 vitima é branca, se encontrando em uma faixa etária elástica, de mais de 60 anos.

-A titulação das Terras Quilombolas foi irrisória nos últimos 08 anos. O Inesc acaba de divulgar relatório no qual denuncia que nos últimos 05 anos, foram gastos menos de 20% da verba orçada para as titulações, em um frontal desrespeito e pouco caso com as populações negras tradicionais. Entre janeiro de 2008 e junho de 2010, o governo federal titulou apenas 02 quilombos no RS, segundo o mesmo relatório, não suplantando 60 as titulações do governo Lula, dos quase 5000 quilombos em todo o Brasil.

-Recentemente a mídia divulgou que 72% das quase quarenta mil vítimas de trabalho escravo, no campo e na cidade, são negros. Isto espelha a violência e o atraso que vive nosso povo, vitimas da ganância de ruralistas e capitalistas criminosos neste país. Qual o papel de políticos e de juízes nesta questão. Recentemente a senadora Kátia Abreu do DEM-GO, parceira do Demóstenes Torres, defendeu publicamente os modernos escravistas.

-A Lei 10.639 não é implementada por falta de interesse político dos governos federal, estaduais e municipais. O que fazem vereadores, deputados e senadores?

-O Plano Nacional Contra a Discriminação Religiosa foi engavetado pelo governo, a pedido de evangélicos. Que tem pra nos dizer sobre isso a candidata Dilma?

-As cotas para negros, nas universidades, no serviço publico, na propaganda e nos partidos políticos, estão ameaçadas com a ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade do DEM/PMDB, e com a Sanção do Estatuto da igualdade Racial pelo presidente Lula. O que farão deputados, senadores, o governo e os ministros do STF, sobre a questão?

-O racismo é mantido como uma arma para embarreirar as oportunidades de trabalho, melhores posições e salários, moradia, saúde, educação e condições de vida para negras e negros. Que tem a dizer sobre isso os candidatos?

O voto no Lula e no Serra em 2002 e 2006, não melhorou a vida dos negros, da população pobre e trabalhadora. Ao contrario, carreou verdadeiras fortunas para as montadoras de carros, para os banqueiros, para a indústria de eletro-doméstico e para os ruralistas. Sem duvida, melhorando a vida dos políticos, dos empresários, dos altos funcionários dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Aumentando as distancias e as desigualdades entre os mais ricos e a população mais pobre. É só observar que o dinheiro compra menos a cada mês.

Qual o programa de governo interessa aos segmentos populares e marginalizados da População? Que democracia quer os trabalhadores e os pobres do Brasil, o direito de votar e passar necessidade? Ou a democratização das decisões, acabando com o fórum privilegiado para militares, policiais militares, políticos, juízes e governantes corruptos? Revogando mandatos, e mandando para a prisão os ladrões do dinheiro do povo e os sonegadores, e os funcionários público civil ou militar que cometam crimes contra o cidadão desarmado.

-A reforma Agrária, um dos maiores tabus no Brasil beneficia a população do campo e da cidade. Porque o governo não a implementa? Porque em 08 anos assentou apenas 1/3 do prometido? Seriam os camponeses pobres prioridade do governo? Estariam eles interessados no bem estar daqueles brasileiros e no barateamento dos preços dos alimentos? E Quanto a questão do tamanho da propriedade da terra ter no máximo 1000 hectares, uma luta antiga dos Companheiros do MST, para uma efetiva Reforma Agrária e Urbana, pois a segunda e consecutiva da efetiva produção da primeira questão, a desconcentração de terra no Brasil.

A Regularização Fundiária dos Territórios Negros Urbanos sejam Quilombolas ou de Matriz Africana, é um desafio para consolidação de uma visceral transformação e mudança social nos grandes centros urbanos

-A corrupção na política financia e inflaciona as campanhas eleitorais, custando muito caro ao povo. Reduz a capacidade de investimentos, a quantidade e a qualidade dos serviços públicos oferecidos a população. Inviabilizam as candidaturas de lideranças populares, impedindo-os de participar do pleito de defendendo projetos populares. Qual a Reforma Política e Eleitoral quer o povo para o Brasil? Defendemos o financiamento público de campanha com cotas para as representações negras políticas como forma de Reparação ao Povo Negro no Parlamento Brasileiro, e com rígidos mecanismos de controle social e com base nos direitos civis, sociais, econômicos e políticos da população negra do país que representa mais de 50% da população brasileira.

-No Brasil, quem paga imposto é assalariado. O imposto de renda é descontado do salário, não há como fugir do leão. Os impostos sobre todo tipo de produtos, pesam mis no bolso do trabalhador que do empresário e do rico. Quanto mais risco, menos impostos. Os ricos gastam seu dinheiro com supérfluos, produtos importados, aquisição de patrimônio, carrões, artes e viagem ao exterior. Geralmente não pagam impostos sobre essa acumulação e consumo. Os pobres por seu turno, não tem opção, pagam antecipado. O imposto é a forma de transferir renda e diminuir a pobreza. Que reforma tributária queremos para esse país se tornar mais justo, com todo seu povo?

-A política econômica do governo convoca o povo ao endividamento e ao consumo, contraditoriamente, aumenta os juros para barrar o mesmo consumo. Ainda que muitos estudos de órgão competentes como o IPEA e o DIEESE expressem uma melhora sensível nos indicadores sociais brasileiros, quanto ao aumento de renda, poder de compra, geração de empregos, grande parte, são resultados de políticas de transferência de renda, as quais resolvem parte do problema, muitas vezes utilizando os programas de governo para fins essencialmente eleitoreiros.

Aumentando a corrupção e os currais eleitorais e coligações cada vez mais espúrias para de manutenção do status-quo e de dominação econômica por parte dos grandes concentradores da renda no campo de na cidade.

O Brasil não possui um projeto de política de desenvolvimento para contemplar a inclusão com trabalho e salários decentes o seu povo. Promovendo justiça social, igualdade, distribuição de renda e boas condições de moradia, saúde, educação, saneamento, transporte a toda a população. Ao contrario disso, é cada vez maior a diferença entre ricos e pobres.

-A justiça no Brasil é lenta, parcial e cara, coisa de rico. De quem tem dinheiro e bons advogados. O pobre mofa na prisão por pequenos delitos. A justiça, a política, e a economia no Brasil estão voltadas para favorecer as classes privilegiadas, seus agregados e gerentes. Os juízes (como os políticos) definem seus próprios salários, seus cargos são vitalícios, decidem sempre a favor dos poderosos. É preciso democratizar a justiça com controle da sociedade. Que Justiça quer nosso povo?

-As elites brasileiras são as mais nefastas do mundo. Só pensam em explorar os recursos naturais do país e seu povo, transformando o resultado disso, em enriquecimento pessoal. Agora mesmo, atuam para aprovar uma lei que violenta e degrada os recursos naturais e a preservação dos rios e das matas. Comprometendo a natureza e o planeta para as próximas gerações, em nome de lucros coorporativos sem nenhum beneficio social. A poucos meses o congresso legalizou milhares terras publicas griladas por latifundiários e seus jagunços, com a expulsão e assassinatos de trabalhadores sem terra, índios e quilombolas.

-O Brasil e suas elites não estão interessados em um projeto de nação que beneficie e faça crescer os direitos e a melhoria das condições de vida do povo e dos direitos da cidadania. Continuam concentrar seus projetos no enriquecimento das elites, veja a polemica recente sobre a exploração do pré-sal, que as elites e os políticos preferem entregar aos interesses privados e as empresas estrangeiras, com as quais mantém seus contratos, de modo a beneficiar-se, a empregar esses recursos em políticas que beneficiem todo o povo brasileiro. Qual projeto Político de Nação queremos para o país?

Esses são alguns pontos que suscitam a reflexão dos brasileiros neste momento eleitoral. Que candidato, ou candidatos, a deputado, senador, governador e presidente se comprometeria com essas questões que serão determinantes para o futuro do país de nossos filhos e netos?

As eleições passam, o racismo, a opressão, a violência e a miséria permanecem. É nossa responsabilidade pensar no legado que deixaremos para as futuras gerações, ou deixamos que os espertos e oportunistas se locupletem das riquezas da nação e de todo o povo? Os políticos e os partidos se comprometem com o que? Como? Mereceriam nossos votos? Reginaldo Bispo-Coordenador Nacional de Organização do MNU -Movimento Negro Unificado

27 de set. de 2010

As 'armações monstruosas' e o jornalismo criminoso da Folha de S. Paulo

MONSTRUOSA ARMAÇÃO
Brasília Confidencial

O filme “A Vila” não é lá grande coisa, mas seu cenário é cheio de metáforas: um lugarejo de onde ninguém ousa sair por medo de monstros que habitariam a floresta que o cerca. Alguém disse que os monstros existem, mas eles nunca foram vistos e ninguém tem coragem de procurar a verdade.

Há exatos três meses, em 12 de junho, o maior jornal do país publicou uma notícia que, embora não citasse nenhuma fonte, era taxativa: um “grupo de inteligência” do comitê eleitoral de Dilma Rousseff usara dados fiscais sigilosos do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge, na montagem de um dossiê contra Serra. Descobriu-se depois que outros sigilos teriam sido quebrados – da filha de Serra, do genro dele, de mais dois tucanos de alta plumagem – e ficou estabelecido a partir daí, como fato incontestável, que todos os dados acabaram fazendo parte do mesmo dossiê.

Assim como as feras da floresta de “A Vila”, os monstros que habitariam o submundo da campanha de Dilma nunca foram vistos em ação. Não há provas de que algum crime tenha sido cometido. Não há sequer indícios de que alguma ação clandestina tenha sido praticada. E praticamente ninguém teve coragem de procurar a verdade.

Até que...A própria Folha de S. Paulo, autora da denúncia, publicou ontem, sexta-feira, uma notícia que desmente, uma por uma, suas acusações.

Depois de 90 dias em que tratou as contestações de Dilma e do PT com arrogância, a Folha confessa, em texto sem assinatura, produzida pela sucursal de Brasília: o comitê de Dilma não produziu um dossiê; apenas teve acesso a um dossiê feito pelo PT de São Paulo há cinco anos atrás. Trata-se, na verdade, de uma papelada de cem páginas escrita pelo partido para solicitar que o Ministério Público e a Procuradoria da República investigassem possíveis irregularidades em privatizações tucanas, que poderiam ter beneficiado José Serra, sua filha e seu genro.

A Folha informa que o material que teria sido produzido pelo suposto “grupo de inteligência” da campanha de Dilma “é idêntico ao que o partido havia encaminhando cinco anos antes ao MP”. O jornal ainda confessa que as cem páginas produzidas pelo PT paulista resultam de “pesquisa em cartórios de registros de documentos, na Junta Comercial de São Paulo e em sites na Internet”. E mais: reconhece que “não há nesse lote de papéis indício de quebra de sigilo bancário ou fiscal”.

Não há monstros na floresta. Apenas mentira e medo para assustar os “moradores da Vila”. A Folha também não se retrata. Limita-se a noticiar “naturalmente” que MENTIU.

Durante 90 dias os grandes jornais e revistas adotaram as acusações da Folha como postulado e ponto de partida para a cobertura dos vazamentos de dados da Receita. Nos últimos 20 dias, praticamente não se falou em outra coisa, inclusive no Jornal Nacional, que tem dedicado blocos inteiros ao assunto.

Alguém vai pagar por isso? No momento, quem paga é o eleitor, privado de informações isentas da impresa. No dia 3 de outubro, a conta finalmente poderá ser jogada na mesa da oposição. E a Vila toda, poderá, enfim, passear livremente na Floresta.

Sem medo...Crê-se.

BRASÍLIA CONFIDENCIALwww.brasiliaconfidencial.inf.br

8 de set. de 2010

Minhas razões para não votar em Alckmin

Hesitei por muito tempo para escrever estas notas até porque há tempos perdi a inocência com o partido que amei. Mas minha esperança era que a campanha do Mercadente fosse mais corajosa e incisiva na discussão sobre os problemas que afetam todos nós aqui em São Paulo. A campanha tem sido pobre no que diz respeito ao debate de temas tão caros a nós. Falta mais firmeza em chamar os 16 anos do PSBD em São Paulo pelo seu nome mais apropriado: um desastre político, social e humano. Até mesmo as 13 propostas para São Paulo, apresentadas pelo candidato do PT carecem de mais vigor. Ouviu os movimentos? Ouviu as associações de classe, as igrejas, as gentes das periferias urbanas? São Paulo merece - e Mercadante tem competência para oferecer - propostas melhores.

Havia um tempo em que o anel de tucum no dedo selava o compromisso cristão com a justiça social. Era (e é) uma característica daquela militância social comprometida com os mais pobres, doa em quem doer. É pedir muito para Aloisio Mercadante no contexto em que a pobreza da imaginação política é uma doença que acomete as nossas melhores apostas políticas. Mas o anel de tucum no dedo do senador bem que poderia ser um convite às origens. Ao deixar de fora as questões mais espinhosas de São Paulo - como a violência policial contra os negros, o complexo industrial prisional, a privatização dos hospitais públicos, o estado como negócio privado, entre outros - Mercadante perde a oportunidade de reunir uma frente ampla contra uma gente que continua imbatível em sua insensibilidade humana.

Isso dito, 13 razões para não votar em Geraldo Alckmin:

1 - POLÍCIA E JUVENTUDE NEGRA - A polícia paulista é uma das que mais mata no país. Nos últimos dez anos foram quase 6 mil mortes, a maioria de jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, Baixada Santista, Campinas; (O PCB tentou fazer o debate via Odair dias, mas a Justiça concedeu liminar ao PSDB para retirar campanha do ar);

2 - SISTEMA PRISIONAL - São Paulo possui o maior contigente de pessoas encarceradas do país. No governo do PSDB houve um aumento de quase 200% na taxa de encarceramento, passando de 56 mil em 1996 para 167 mil em 2010. A maioria dos presos são jovens negros e pobres (só PSOL abordou o assunto até o momento);

3 - RDD - Para combater a criminalidade, o governo paulista incrementou uma série de medidas que atentam contra o estado democrático de direitos. O Regime Disciplinar Diferenciado faz parte do pacote;

4 - POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA - O número de pessoas em situação de rua no governo DEM-PSDB mais do que triplicou. Nem a Prefeitura de São Paulo sabe ao certo quantas pessoas moram nas ruas da capital. Os movimentos sociais estimam que haja 15 mil; A política pública para a população em situação de rua é a distribuição de sopa e/ou a polícia;

5 - CAOS NA SAÚDE - Ao contrário do que a propaganda diz, o sistema de saúde em São Paulo piora a cada dia. Hemodiálise, quimioterapia, consultas médicas.....média de seis meses de espera;

6 - PRIVATIZAÇÕES - Os hospitais públicos estão sendo entregues à iniciativa privada por meio de transferência de recursos. São as grandes empresas médicas como Albert Eistein, Santa Marcelina, Siro Libanês que estam lucrando. Estrategia de atendimento: porta-fechada;

7 - FALÈNCIA NA EDUCAÇÃO PÚBLICA - São Paulo registra os piores índices na avaliação da educação pública de nível fundamental-médio. O desempenho pífio da educação pública em São Paulo foi explicada pelo PSDB como culpa dos nordestinos que baixariam a média paulista;

8 - SALÁRIO DOS PROFESSORES - O governo do PSDB paga mal os seus professores e trata-os como bandidos. Quem não se lembra das cenas de violência contra as manifestações dos professores por melhores salários?

9 - HABITAÇÃO - A população das áreas de risco em São Paulo recebe da Prefeitura R$ 5 mil para desocupar a área. O dinheiro dá apenas para comprar um outro barraco em outra área de risco;

10 - ENCHENTES - O governo PSDB-DEM gasta mais com propaganda do que com a manutenção dos piscinões e a contenção de encostas. O último crime: a população do Jardim Romano (na capital) ficou mais de um mês embaixo d'àgua;

11 - CRACOLÂNDIA - Cracolândia não é apenas a região central de Sampa. A cidade inteira virou uma cracolândia! Faltam clínicas de atendimento. A política de combate ás drogas tem sido a prisão ou a morte;

12 - COTAS NAS UNIVERSIDADES - São Paulo é um dos poucos estados brasileiros a não adotar um programa de ações afirmativas nas universidades. As universidades paulistas são brancas e ricas. USP e Unicamp torraram milhões de reais em programas de inclusão sem impacto na redução das desigualdades educacionais entre pobres e ricos, negros e brancos;

13 - AS POLÍTICAS PÚBLICAS DO PSDB: O PSDB reforça o caráter assistencialista, ao invés de valorizar a perspectiva dos direitos. Olhe só quais são as políticas públicas deles:


TRANSFERÊNCIA DE RENDA = Cesta básica, leve leite

SEGURANÇA ALIMENTAR = Bom prato

JUVENTUDE POBRE E NEGRA = Polícia, prisão e morte

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA = Sopa, albergue, vale-passagem para o nordeste

EDUCAÇÃO = aprovação automática

SAÚDE: mutirão (feira da saúde)

SEGURANÇA PÚBLICA = 'resistência seguida de morte'

INCLUSÃO DIGITAL = Acessa São Paulo ( 1 hora de acesso nos poupa-tempos)


Chupa essa manga!

Jaime

17 de jun. de 2010

Ouro de tolos: O Estatuto da Igualdade Racial e a submissão política negra II

Por Jaime Alves


O Senado Federal aprovou no último dia 16 de junho a versão demostiniana do Estatuto da Igualdade Racial. Trata-se de um texto indigesto apenas palatável para aquela fatia minúscula do movimento negro que, protegida pelo manto clerical ou de olho em alguns dividendos para as eleições 2010, se submete (e a todos nós) a um constrangimento histórico. Depois de dez anos de luta, e para salvar algumas plataformas político-partidárias no apagar das luzes, um acórdão retirou as propostas mais substanciais do documento como: a reserva de vagas nas universidades públicas, as políticas de saúde específicas para a comunidade negra e a demarcação das terras quilombolas. Os três tópicos em si já representam a bandeira de lutas mais significativa do movimento negro porque elas são resultado de um acumulado histórico de reivindicações. Em nome de quem a meia dúzia de gatos pingados endossou tão indecente proposta? A quem interessa um Estatuto que já nasce morto? O que a aprovação do Estatuto light tem a nos dizer sobre os processos de submissão política negra nos últimos anos? Por que a pressa em aprovar um Estatuto vazio de propostas?


Sem querer generalizar a experiência pessoal para o conjunto dos movimentos negros, aqui vai um palpite: nos últimos oito anos, militando em um modelo de movimento onguista ‘particular’ em São Paulo, “aprendi” que agora é hora de negociar, que a história chegou ao fim, que já não há espaço para sustentar um projeto radical de transformação social, de que a palavra de ordem agora é ocupar menos a rua e fazer mais lobby político nos bastidores do poder, que ao invés das ruas, devemos ocupar a ponte aérea, os gabinetes. Aprendi que a palavra ‘raça’ deve ser retirada do vocabulário e ser substituída pelo eufemismo ‘diversidade’, que a palavra ‘reparação’ ou ‘justiça racial’ dever ser substituída pela mais palatável ‘igualdade racial’.


É neste contexto de pobreza da imaginação política que a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial deve ser entendido. A palavra “radical” em certos círculos tomou uma conotação tão estranha e tão vazia de significados que soa com a mesma intensidade da palavra comunista no período da guerra-fria. Isso para não falar na palavra “utopia”, utopia negra, vista como um sacrilégio. E olhe que não falo de utopia como ideal irrealizável, mas como sonho e luta de transformação radical para deslocar as bases de poder na nossa sociedade.


Pois bem, da maneira como foi aprovado, o Estatuto representa uma carta de intenções genéricas que diz pouco ou quase nada sobre a luta do povo negro, mas que diz muito sobre o momento histórico em que vivemos. No entanto, o que mais me angustia no Estatuto aprovado não é o corte do senador Demóstenes Torres (ex-PFL-GO). O senador fala de um lugar racialmente privilegiado e incorrigível. Está defendendo os interesses do seu grupo. E disso não há duvida!


O que assusta é que, em um momento de refluxo c da luta social, em um momento em que os movimentos sociais da cidade e do campo sofrem uma aprofunda criminalização, quando intensifica o massacre da juventude negra nas periferias urbanas, algumas ‘lideranças’ – supostamente inspiradas por Zumbi e pelo espírito santo – endossam uma proposta indecente como a que agora temos. Admito que talvez eu esteja deprimido e admito que estar deprimido é um privilégio quando tantos estão sobrevivendo no inferno. Mas talvez devêssemos nos perguntar: por que a recusa fatalista da utopia negra? Em nome de quem o Estatuto foi negociado? Não em meu nome!

23 de mai. de 2010

Estado Terror: Juventude negra e violência policial em São Paulo


José Carlos Júnior, Roberto Aparecido Ferreira, Eduardo Pinheiros dos Santos , Alexandre Menezes dos Santos. O que há em comum na história de vida deles? Negros, pobres, jovens e moradoras da periferia, todos eles foram assassinados por policiais militares. Apesar da PM insistir que são atos isolados, a periferia paulistana está cheia de tragédias humanas, cheia de mães que choram seus mortos na interminável violência policial.

Segundo dados do Mapa da Violência, da Unesco, os jovens negros têm 72% a mais de chances de serem mortos por armas de fogo. Em alguns estados, como Paraíba e Alagoas a taxa de homicídio entre eles é de mais de 300%. O mais preocupante é que apesar dos números, não há uma política pública de proteção à vida dos jovens negros urbanos. Em São Paulo, o que se vê é exatamente o contrário. A polícia paulista segue sendo uma das mais violentas do país.

Só para se ter uma idéia, entre 2003 e 2009 as polícias dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo mataram juntas um total de mais de 11.000 pessoas, a maioria sendo jovens negros. Em São Paulo, o artifício das “resistências seguidas de morte” são uma verdadeira carta-branca para a polícia seguir matando. De acordo com a Human Rights Watch, “nos últimos cinco anos, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte” no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a África do Sul (1.623), um país com taxa de homicídio muito superior a São Paulo”.

Nos solidarizamos com as mães dos jovens negros assassinados pela PM, reconhecemos a conduta dos bons policiais e cobramos providências do governo do estado na mudança de orientação da PM e na garantia de políticas públicas para nossa gente. Afinal, a violência policial é a outra face da mesma moeda: as políticas de exclusão que condenam a juventude negra e pobre ao desemprego, à violência e à falta de acesso à universidade pública. “Estamos por nossa própria conta...”.

A foto acima, da Anistia Internacional, é referente à operação militar em uma favela do Rio de Janeiro. Lá também se repete o padrão sistemático de mortes.

28 de abr. de 2010

Facismo social e violência cotidiana na Pérola do Atlântico

Jaime Amparo-Alves*

Quem conhece a geografia do Guarujá, sabe que a cidade, vista de cima, tem o formato de um dragão. O que o turista desavisado, que chega pela rodovia Piaçaguera e se hospeda na orla marítima, não sabe é que o dragão mitológico que dá forma à Ilha pode ser também uma metáfora das condições cruéis de existência dos milhares de miseráveis que sobrevivem nas encostas dos morros ou nos manguezais que abrigam as mais de setenta favelas do município.

Sob todos os ângulos, Guarujá é um desastre ambiental e humano. Mais do que isso, a cidade é uma metáfora do Brasil cindido, fraturado, dividido. Talvez em nenhum outro lugar o abismo social entre brancos e negros, ricos e pobres assuma uma dimensão tão profunda e tão cruel.

Isolados da cidade formal, os pobres sobrevivem graças à teimosia. Andam sob duas rodas porque o transporte coletivo tem preço exorbitante e é monopólio autorizado pelo poder público; vivem nas áreas de risco porque as áreas nobres são propriedade dos turistas ou da elite local; morrem nas filas das policlínicas porque o único hospital que atende pelo SUS está afundado em dívidas. Em Guarujá, nada é absurdo. Até mesmo as praias têm dono. Por iniciativa oficial, os turistas de um dia – aqueles que são vítimas da mesma elite cínica que desce a serra para humilhar os pobres de lá – são impedidos de entrar na cidade. “É que são farofeiros e só trazem problemas para o município”, me diz um amigo.

Não há nada de novo na atual onda de violência que aterroriza os turistas e dá o combustível para a paranóia moral da mídia sensacionalista. Se entendermos a violência como um fenômeno social multifacetado - e não apenas como um ato isolado que tem no homicídio sua manifestação total - veremos que no Guarujá as suas vítimas preferenciais têm sido historicamente os pobres e negros. Para eles, as violências em suas formas física, estrutural e simbólica têm sido uma realidade cotidiana.

O problema do Guarujá não se resolverá com políticas de segurança pública militarizada que têm como filosofia a eliminação dos cidadãos ‘indesejáveis’, como nos quer fazer crer a filosofia do medo disseminada pela mídia. O problema ali é que a cidade tem Estado penal demais e estado social de menos. Na verdade, a polícia tem sido a única política pública para a juventude negra e pobre segregada nos morros e mangues da Pérola do Atlântico. São eles, os jovens negros e pobres, os alvos preferenciais das políticas de tolerância zero que antecedem os feriados prolongados e as temporadas de férias. A palavra de ordem é “tirar de circulação” para que os turistas possam desfrutar a cidade em ‘paz’. A paz para quem?

O principal combustível da atual onda de violência no município não é o PCC, mas sim o fascismo social que divide a cidade entre os bons e os maus, os cidadãos de 1ª, 2ª e 3ª categoria, os do morro e os do asfalto, os dos barracos e os dos condomínios fechados, os sem teto e os donos das praias públicas. Os policiais militares, ainda que queiram, não poderão resolver o que o poder público insiste em esconder debaixo do tapete: o terreno fértil das desigualdades estruturais.

Mas a elite guarujaense pode ficar sossegada. Este não é o fim do mundo para os seus negócios. Até a temporada de férias, o turista terá esquecido o drama dos miseráveis que fazem a cidade e terá chegado com seus dólares. Andando na orla ou no restaurante de um luxuoso hotel que ocupa o espaço público na praia da enseada, uma elite cínica e perversa desfilará charme e crueldade no seu exercício predileto de humilhar os pobres. A violência que hoje assusta terá ficado para trás.

Enquanto isso, ali no alto do morro da Vila Bahiana, à altura da Rua Colômbia, uma pedra gigante teima em anunciar uma outra tragédia iminente. Fecho os olhos e vejo corpos esmagados. Mas isso não tira o sono de ninguém. Buon Appetito!

*jornalista e pesquisador pela Universidade do Texas, em Austin

15 de abr. de 2010

O Haiti nosso de cada dia

Rio: um desastre humano e ambiental
Certamente você viu pela TV a tragédia que assolou o Rio de Janeiro. O que a mídia não mostrou foi a cor dos mortos. Afinal, 80% dos moradores das favelas cariocas são negros - a propósito, o mesmo padrão de segregação residencial que se repete nos morros de Salvador, nos mangues de Recife ou na hiper-periferia paulistana. A população negra da ‘cidade maravilhosa’ contou e continua sepultando suas vítimas. A culpa é da natureza, dizem os papagaios e cães-de-guarda do Cidadão Kane. Como no Haiti, desnaturalizar o desastre é a nossa tarefa! Afinal,a tragédia já faz parte da nossa experiência e será só questão de dias para sua repetição. Em alguma encosta, uma mãe negra perde o sono sempre que começa a chover....ou quando a polícia sobe o morro.

30 de mar. de 2010

Quem tem medo de raça? A paranóia branca e as ações afirmativas no Brasil.

Jaime Amparo-Alves

Nada de original. Em um artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 18 de fevereiro, intitulado “Fora da Lei”, Demétrio Magnoli reproduz com um atraso de dez anos a crítica feita por Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant sobre uma suposta importação do modelo de relações raciais estadunisense pelo movimento negro brasileiro e seus intelectuais. Em Sobre as artimanhas da razão imperialista os autores acusavam os intelectuais negros estadunidenses de imperialistas culturais – a crítica é direcionada principalmente, embora não exclusiva, ao livro de Michael Hanchard ‘Orfeu e o poder’ (2001) - e a emergente academia negra norte-americana de impor uma falsa universalização do racismo aos países do chamado terceiro mundo.

Haveria um certo excepcionalismo brasileiro no campo das relações raciais que faria o Brasil ser diferente. Ainda, os autores rotulavam o intercambio – cada vez mais crescente – entre intelectuais negros dos dois países de tática estratégica para a imposição de um modelo bi-polar de relações raciais só presente na America do Norte. As agencias de financiamento como a Fundação Ford aparecem na critica como o exemplo mais concreto do imperialismo cultural disfarçado de intercambio acadêmico.

O debate que se seguiu à crítica de Bourdieu e Wacquant já é conhecido. John French, Edward Telles, Jocélio Telles, Michael Hanchard, entre outros, responderam dando o merecido crédito à autonomia intelectual negra no Brasil e mostrando que a tão propalada excepcionalidade brasileira não se sustenta quando contrastada com as condições de vida dos brasileiros negros.

A volta ao debate nos dá a oportunidade de reenfatizar um aspecto central da experiência negra nas Américas: em todos os países negras e negros ocupam índices cruéis na hierarquia social. Não há nada de excepcional no quadro de relações raciais do Brasil e a similaridade nas ‘condições materiais de existência’ – em que pese suas especificidades – ajudam a tecer uma comunidade política imaginada e concreta, a Diáspora Africana.

O que há em comum na experiência dos jovens negros das favelas cariocas e os jovens negros dos guetos de Chicago ou Nova York? O que une o viver urbano de negras e negros do Haiti, da Colômbia, de Cuba, dos EUA, do Brasil, dos países africanos? Quais as especificidades e as semelhanças na representação midiática de negras e negros nas Américas e nas Áfricas? Portanto, para desconstruir o mito da suposta importação acrítica do padrão de relações raciais dos EUA, teríamos que perguntar aos neo-freirianos do momento por que a fobia com a crescente conscientização política transnacional negra e por que os negros brasileiros aparecem em seus textos como incapazes de possuírem uma autonomia intelectual própria.

Tal fobia está presente nos textos de Demétrio Magnoli. Em Fora da Lei, o autor repete as táticas já conhecidas nos seus textos anteriores. Trata-se do recurso lingüístico de imputar a outrem afirmações que ninguém fez. Quem no movimento negro teria se oposto à defesa da qualidade do sistema público de ensino? Quem teria afirmado a existência biológica de raça? Haveria uma incompatibilidade na luta pela democratização do acesso à universidade pública e a defesa da escola pública?

De um lugar social racialmente privilegiado, os neo-freirianos ambiguamente reconhecem a existência do racismo, mas não admitem a luta política contra suas manifestações cotidianas. É como se raça fosse uma construção social sem impactos reais diferenciados nas chances de vida e de morte de brancos e negros - não é a toa que O Atlantico Negro, de Paul Gilroy, ocupe hoje no Brasil, mesmo nos círculos radicais negros , um lugar de destaque. Esse social construtivismo na verdade esconde uma paranóia contra qualquer forma de organização política que questione a supremacia branca. Ao contrário do que se quer fazer crer, o que orienta tais posicionamentos políticos não é a preocupação com o renascimento do ‘estado racial’ ou a suposta defesa da igualdade entre todos. Bobagem....

Os terrenos estão bem demarcados e não há ingenuidade no debate: a organização política dos negros e negras representa uma ameaça real ao poder político-econômico de uma elite branca que tem na academia e na mídia seus principais instrumentos ideológicos. Faz sentido, portanto, que intelectuais reconhecidamente competentes no repertório acadêmico como Ivone Maggie, Peter Fry, Márcia Green, e agora Demétrio Magnoli se prestem ao papel de arquitetos do caos e invistam suas carreiras acadêmicas na construção do ‘apocalipse racial’.

O mundo não vai acabar com as cotas nas universidades públicas, como mostra o exemplo positivo da Universidade de Brasília - a primeira instituição federal de ensino superior a aprovar cotas para negros - e das quase cem instituições públicas que adotam algum programa de ações afirmativas. Estas instituições estão recuperando o sentido republicano da universidade pública, ainda que após seis anos de cotas racias, a UnB ainda possua uma população afrodescendente sub-representada (eles são pouco mais de 3 mil dos 26 mil alunos). Mas a verdade é que quem tiver curiosidade de estudar os números da inclusão verá que as cotas raciais começam ajudar o Brasil na longa marcha em busca do reencontro consigo mesmo.

As ‘divisões perigosas’ que historicamente têm colocado em lugares sociais distintos negros e brancos – os primeiros nas favelas, nas prisões, na pobreza, nas estatísticas insidiosas da violência policial, no chão das fábricas e os segundos nas melhores universidades públicas, nos condomínios fechados, na direção dos conglomerados empresariais – são a verdadeira ameaça à efetivação da igualdade substantiva entre todos os brasileiros. A luta dos negros e negras por igualdade de direitos vai ajudar a consolidar a cidadania e transformar a democracia racial em uma realidade concreta. Só a luta organizada por igualdade racial de fato poderá desbancar o mito da harmonia racial.

As ações afirmativas não farão surgir um tribunal racial nem criarão uma ‘rotulação estatal dos cidadãos segundo o critério abominável da raça’. De fato, ‘raça’- como empregada por Demétrio Magnoli - é um critério abominável, como o é sua má-fé e o seu cinismo de colocar na mesma cesta a luta do movimento negro pela igualdade racial e o estado nazista alemão. Ao reivindicar a categoria raça como identidade política, negras e negros o fazem a partir de uma perspectiva crítica e o fazem porque os brancos não deixaram outra escolha no campo das disputas políticas. Nesse sentido, tem sido ainda pouco explorada a discussão sobre a incapacidade da esquerda brasileira em incorporar a dimensão de raça em sua estratégia política. O reducionismo econômico da luta de classes é sintomático da dificuldade, mesmo entre os mais progressistas intelectuais de esquerda, em entender a experiência negra, mas esta é uma outra história.

Racialmente interpelados como ‘negros’ – com toda significação histórica que a palavra carrega – no contexto de desigualdades racialmente estruturadas negras e negros re-significam a categoria ‘raça’ e tecem uma nova identidade política. Fazem sentido da vida e dos seus encontros cotidianos racializados a partir da identificação com um grupo social.

Se no embate político por direitos de cidadania novos brasileiros se reencontram com seu passado e quebram o paradigma da linha cromática sempre em direção ao branco, ainda melhor. O reconhecimento da negritude está em sintonia com a celebração da diversidade étnico-racial tão forte entre nós. Mas é hora de celebrar a diversidade brasileira não apenas no futebol ou no botequim, como certa antropologia da cordialidade sugere. É hora de miscigenar os espaços de poder.

O movimento negro está abrindo, no grito e na raça, uma porta ha tempos fechada. A intelectualidade negra cresce e com ela um novo paradigma na produção de conhecimento sobre as relações raciais no Brasil e nas Américas. Não seria a resistência às ações afirmativas um sintoma da impossibilidade cognitiva dos brancos em reconhecer seu privilegio e o lugar de onde falam?

Para saber mais:
Bourdieu & Wacquant. As artimanhas da razão imperialista. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 1, 2002, pp. 15-33
HANCHARD, Michael (2001). Orfeu e Poder. Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ/UCAM.

3 de jan. de 2010

De onde fala Boris Casoy?: Arrogância jornalística, cinismo cruel e fascismo social

Jaime Amparo-Alves


Na noite do dia 31 de dezembro, o jornalista Boris Casoy fechou a conta anual da imprensa brasileira à altura do jornalismo praticado pela mídia gorda em 2009. Para os padrões éticos da imprensa nacional, não poderia ter sido melhor. No intervalo do Jornal da Band, o apresentador deixou escapar uma daquelas verdades guardadas no closet e disfarçadas sob o moralismo dirigido comum aos representantes da meia dúzia de redações do eixo Rio-São Paulo que comandam o jornalismo do país. Sob risos, Boris disparou: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”.


Ainda que o comentário, por si só, deixe transparecer o que pensa um mais respeitados âncoras do jornalismo brasileiro sobre os garis, a infeliz frase de Casoy apenas expressa a ponta de um complexo emaranhado ideológico que sustenta as distinções/hierarquias sociais em nosso meio e que tem na mídia um dos seus principais instrumentos. Mais do que ofender os garis e os telespectadores/as do Jornal da Band – e foi uma ofensa seriíssima -, a frase é expressão do jornalismo hegemônico que consumimos que por sua vez deve ser contextualizado nas nossas relações sociais.

A inteligentsia brasileira já tentou explicar essa arrogância social, esse desqualificar de certos grupos, a partir de uma antropologia do jeitinho brasileiro – destaque para o famoso: ‘você sabe com quem está falando?. Tal antropologia, que tem Roberto Da Matta como seu maior expoente, identificou o desprezo às normas e as estratégias interpessoais de legitimação de poder e distinções sociais como regras da vida cotidiana. Marilena Chauí e Paulo Sérgio Pinheiro identificam na herança do Brasil autoritário (a primeira no mito fundacional do país, o segundo nos períodos de estado de exceção) certo autoritarismo socialmente implantado que faz com que as dominações de gênero, raça e classe social sejam sistematicamente reproduzidas em nossa sociedade e encontrem eco mesmo entre as ‘vítimas’ preferenciais da nossa tradição violenta.


Se o jornalismo, como prática social, é reflexo da sociedade, então é razoável crer que o fazer jornalístico também carrega em si as mazelas e vícios sociais do seu tempo. É razoável, mas poucos têm reconhecido esse pertencimento/afinidade jornalística com os padrões perversos de reprodução das desigualdades e hierarquias. Desde a faculdade, jornalistas são semi-deuses/semi-deusas com o dedo em riste, prontos para – a serviço dos patrões – destruir biografias, criminalizar movimentos sociais, negar a existência do racismo, investir no caos.....


É a arrogância jornalística que entra em discussão aqui, não apenas no sentido da arrogância editorial de um veículo se portando como detentor da ‘verdade’absoluta, mas também na postura dos/das figurões da mídia gorda – âncoras, comentaristas, apresentadores – que emprestam a cara aos editoriais dos veículos que representam. Seria ingenuidade não considerar um aspecto central neste contexto: o controle dos patrões sobre a atividade jornalística. No entanto, os figurões em questão só o são porque representam bem o discurso dos proprietários dos meios onde trabalham. Todos os dias eles/elas estão aí com o seu moralismo dirigido – no horroroso jornalismo policial de fim-de-tarde da Band, na estética dissimulada/sofisticada dos editoriais do Bom Dia Brasil ou nos comentários arrepiantes de um tal Arnaldo Jabor no Jornal Nacional, ambos da TV Globo.... E por aí não pára.... vide os textos indigestos dos colunistas de jornalões como Folha, O Globo e Estado, replicados na imprensa regional Brasil afora.


Boris Casoy não está só no que pensa sobre os pobres. O seu insidioso comentário tem muito a nos dizer também sobre o que pensam os nomes da mídia grande sobre sua função social. O desprezo pelos pobres e o silencio das causas gritantes da pobreza não encontra eco apenas no plano político partidário onde uma certa afinidade com o discurso dominante orienta a prática ‘jornalística’ contra os partidos de orientação mais à esquerda. Também no plano social, esse moralismo dirigido investe pesadamente na criminalização dos movimentos sociais, das periferias urbanas e das pessoas em situação de rua..... Quem não se lembra das capas históricas da revista Veja sobre o MST (matéria de capa 'A tática da baderna' de 10/05/2000, por exemplo)?.


“Que m..., dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”. Ta aí.... Boris Casoy bebe da mesma fonte que sustenta o nosso fascismo social – como empregado por Boaventura de Souza Santos - e que é amplamente difundido na humilhação diária a que são submetidos jovens negros no jornalismo policial com suas justificativas cínicas às mortes de supostos ‘bandidos’ nos ‘confrontos’ em ações da polícia, na adjetivação preconceituosa dos protestos urbanos por moradia ou na criminalização das mobilizações pela reforma agrária, na difamação da luta dos afrobrasileiros por ações afirmativas.


Assim como o presidente-metalúrgico agride a sensibilidade depurada dos nossos ‘gatekeepers’, ao escandalizar Casoy, o gari - “o mais baixo na escala do trabalho”- de certa forma expõe de onde falam os formadores de opinião da mídia gorda. A crítica dissimulada que fazem do poder a partir de uma retórica humanista cínica e vazia, não esconde o lugar social de onde falam e os valores que representam.


Aperte o cinto: concentrado em meia dúzia de redações no eixo Rio-São Paulo, o jornalismo hegemônico segue firme na sua promessa cretina para 2010. A contar pela maneira como Casoy iniciou o seu ano de trabalho, não há tréguas: as redações continuarão sendo lugar privilegiado para a legitimação de padrões de dominação. A não ser que a sociedade reaja – junto com as/os jornalistas conscientes da sua responsabilidade social - em um movimento amplo pela democratização dos meios de comunicação e pelo controle social da atividade jornalística – por meio de um Conselho Federal de Jornalistas – garis, domésticas, nordestino/as, negro/as continuarão sendo objetos da violência simbólica e moral de quem deveria zelar pela dignidade humana. Isso é uma vergonha!