“Eu
me situo, primeiro, entre os que crêem na transcendentalidade. Segundo, eu me
situo entre aqueles que, crendo na transcendentalidade, não a dicotomizam da
mundanidade. Até do ponto de vista do senso comum, eu não posso chegar ‘lá’ a
não ser a partir ‘de cá’: se aqui é o ponto em que eu me acho para falar de lá,
então, é daqui que eu parto e não de lá”
(Paulo Freire)
Há muito a se dizer sobre o Plínio. Felizmente
muito já foi socializado pelas redes sociais. Prova maior de que sua
morte não passou despercebida. Algo muito significativo em um tempo sem
memória, como dizia o Gonzaguinha.
De tudo que tem sido lembrado – e que
será pouco diante de sua longa e honrosa trajetória – gostaria de destacar o
aspecto pelo qual eu dele me aproximei, em tempos idos de muitos anos: a
curiosa forma de relacionar fé e política, crença e ação revolucionária,
transcendência mística e imanência histórica.
Plínio é a síntese latino-americana
entre socialismo e cristianismo. Mas não desse cristianismo desenraizado,
midiatizado e superficial das tendências espiritualizantes atuais, tanto na
vertente evangélica quanto na católica: Plínio é da época em que ser cristão
implicava, necessariamente, em ser um militante político. Da velha Ação
Católica ele aprendeu o esquema que conformou o método de grande parte dos
movimentos populares dos anos 50, 60 e do período da ditadura: Ver-Julgar-Agir.
Maneira popular de dizer o que, em registro mais elaborado, alguém já dissera:
não basta ao pensar crítico interpretar o mundo, cabe transformá-lo.
Nos tempos em que a Teologia da
Libertação se expandiu pela América Latina, seja como forma de pensar a fé,
seja como construção concreta de uma Igreja de base, popular e democrática, lá
estava Plínio, na vanguarda de um novo estilo de ser cristão. Esse modo de ser
igreja, esse “ethos libertador”
indicava como desdobramento necessário traduzir fé em ações concretas. Não mais
a filantropia medieval aliviadora da consciência atormentada pela culpa: agora
tratava-se de entender “seguir a Jesus” como “seguir a luta dos pobres por uma
vida digna”.
No entanto, veio a reação nos anos 80.
O Vaticano viu o risco do crescimento de uma Igreja latino-americana autônoma
do imperialismo romano. Então deu o tom, a letra e a regra. E quando, numa bem
sucedida parceria entre conservadorismo religioso e liberalização econômica, a Igreja
Católica virava à direita, nos anos 90 e início do século XXI, lá estava
Plínio, à esquerda, fiel à Igreja, como ele a entendia, mas sem se submeter à contra-revolução
conservadora organizada a partir do papado de João Paulo II.
Para figuras como Plínio, leitor
crítico da história e profundo conhecedor da nossa formação social, não foi
motivo de espanto – e se de desapontamento – o retrocesso da Igreja. Ele, como
poucos, conhecia esta instituição tão bem sintetizada nos versos do poeta Pedro
Casaldáliga: “Metade do mundo definha de
fome e a outra metade de medo da morte./ A sábia loucura do santo Evangelho tem
poucos alunos que levam a sério. /(...) Há muitos caminhos que levam a Roma;
Belém e o Calvário saíram da rota./ A madre Igreja melhorou de modo, mas tem
muita cúria e carisma pouco. /(...) Muitos tecnocratas e poucos poetas, muitos
doutrinários e poucos profetas”.
A Igreja de Plínio – e isto muitos
militantes de esquerda não entenderam – não é a da paz do centro romano: é a da
instabilidade da periferia do império. É
a Igreja que se orienta pela mística daquele movimento inicial que seguiu ao
jovem galileu, originário da classe trabalhadora e não do alto escalão dos
rabinos e escribas; o Jesus histórico, mais que o Cristo, prisioneiro político,
torturado e condenado num processo feito às escuras por afrontar Roma e os
membros do estamento dominante local. História que o catecismo não conta.
Em um simpósio sobre a Teologia da
Libertação, na PUC-SP, ao lado de Paulo Evaristo Arns, figura importante da
hierarquia católica que afrontou a ditadura militar no Brasil, entre tantas
outras ações, Plínio dizia que, nos porões da ditadura, sob as mesmas condições
de tortura, cristãos e comunistas foram obrigados a se reconhecer como camaradas.
E não era uma abstração: era uma situação histórica concreta. Aí, no terreno da
história, a coisa se dá de um modo que questiona as premissas teóricas mais
críticas.
Talvez por isso, pelo entendimento de
que no chão da história o que une socialistas e cristãos autênticos é maior que
o que os separa, ele tenha feito e vivido essa síntese tão difícil.
Embora com o crescimento da força
conservadora no interior da Igreja romana, especialmente com a “eleição” do
Bento XVI em 2005, parecesse a muitos impossível continuar católico, Plínio foi
um dos poucos que manteve a coerência revolucionária, batalhando ainda na
trincheira da fé.
O mais importante é que ele ensinou aos
militantes socialistas – cristãos ou não – muitas coisas. Duas,
fundamentalmente. Primeiro, a paciência com os processos de formação da
consciência popular. Plínio era do tipo que dedicava a mesma atenção dada a uma
reunião sobre questões macro-políticas de grandes líderes partidários a uma
reunião de comunidade com grupo de jovens iniciando o processo de superação do fosso
gigantesco entre fé e vida. A mesma capacidade de ouvir, anotando os pontos
centrais para o debate seguinte.
Político, sim. E dos bons. Líder e
organizador da luta. Mas, antes de tudo, um educador popular do mais alto
gabarito.
Um segundo ensinamento: para se falar
de modo simples, deve-se estudar mais e não menos, como erradamente se pensa.
Leitor e estudioso aplicado, Plínio conseguia dizer em alegorias, em frases
curtas e de fácil entendimento o que um teórico leva páginas para tentar
explicar. Como é possível se falar de modo compreensível, tendo-se formado em
uma cultura vasta e variada? A resposta
é simples: excetuando-se os que, por incompetência ou deliberadamente, não têm
nada de novo a dizer – e como aumentam em nossos dias! –, existem, basicamente,
dois tipos de comunicadores – seja pela escrita ou pela fala: aqueles que se
esforçam por ser admirados e buscam o aplauso; e aqueles que buscam ser
compreendidos, ainda que isto lhes exija simplificar o discurso. Sacrificar a
forma, em nome do conteúdo. Nesse aspecto, Plínio foi um mestre dentro e fora
dos marcos do cristianismo libertador. Ele fez tanto o cristianismo sequestrado
pelo dogmatismo romano quanto o socialismo deslumbrado com o glamour academicista sacudirem sua
poeira e se perguntarem: “afinal, é para ser compreendida a mensagem que se
passa ou é para manter o povo no obscurantismo?”
A mídia, cruel e perversamente, tentou,
sobretudo a partir da campanha para a presidência em 2010, transformar o estilo
de Plínio em caricatura. E percebendo sua incrível capacidade de falar a
verdade de modo direto e simples, tratou, diuturnamente, de persegui-lo a fim
de, no menor tropeço, deturpar frases, forçar uma ideia que o deslegitimasse.
Vigoroso e imbatível, Plínio manteve-se
de pé. E de pé caiu, sem arredar um segundo sequer de seu compromisso com as
causas populares.
Nas vezes que estive com Plínio, a
força de sua presença, que era ainda maior que a incrível força de suas
palavras, fazia-me, desconcertado, pensar que, se não a única, uma das
principais formas de construirmos a laboriosa transição socialista num continente
de colonização ibérica seria pela síntese entre o sentimento religioso inerente
à nossa formação histórica e a necessária revolta contra a situação que
concilia a miséria de muitos com a riqueza de poucos.
Penso ser oportuno lembrar as palavras
de Paulo Freire, na mesma entrevista ao final da vida citada na epígrafe: “Quando muito jovem eu fui aos mangues, aos
morros, às zonas rurais do Recife trabalhar com os camponeses, com os
favelados, eu confesso que fui até lá movido por certa lealdade ao Cristo, de
quem eu era mais ou menos camarada. O que acontece é que, quando chego lá, a
realidade dura daquela gente, a negação do seu ser como gente, a tendência
àquela adaptação, a tendência àquele estado quase inerte diante da negação da
liberdade, aquilo tudo me remeteu a Marx. Eu sempre digo que não foram os
camponeses que me perguntaram ‘Paulo, tu já leste Marx?’ Não! Eles não liam nem
jornal! Foi a realidade deles que me remeteu a Marx. E eu fui a Marx (...)
Quanto mais eu li Marx, tanto mais eu encontrei uma certa fundamentação
objetiva para continuar camarada de Cristo. As leituras que fiz de Marx e
alongamentos de Marx não me sugeriram jamais que eu deixasse de encontrar
Cristo nas esquinas das favelas. Eu fiquei com Marx na mundanidade à procura de
Cristo na transcendentalidade”.
Na ótica de Plínio, ser socialista não
implica necessariamente a extinção da religião: ela pode ser, inclusive, uma
trincheira anticapitalista. Se a transição socialista conservará ou não a
Igreja é algo que não cabe ao cristão ou ao não cristão dizer: a história dirá.
E o que é ainda mais emblemático e atual em tempos nos quais os templos se enchem
de mercadores e compradores: ser cristão implica, necessariamente, ser
socialista.
Provocações do velho Plínio para quem,
dentro ou fora da Igreja, dedica-se a transformar esse mundo cão, em que terra,
teto e trabalho ainda sequer se configuram como direitos básicos.
Plínio vai. Ficamos
nós. De algum modo ele também fica, enquanto nós vamos. Até a vitória.
José Carlos Freire é Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri. Teófilo Otoni/MG.
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