A
violência policial, a morte negra e a dor branca
Jaime
Amparo Alves*
“Há esperança, mas não para nós”
(Kafka)
As imagens da Polícia Militar espancando os jovens
da classe média em seu cívico direito de ocupar as ruas e praças têm causado
indignação e horror. Nada tem sido mais pertubador do que ver nos jornais
pessoas ensanguentadas, correndo sob balas, jatos de pimenta no rosto, ou sendo
varridas das ruas a pauladas. Talvez o exemplo mais pertubador da truculência
policial sejam as fotos da jornalista da TV Folha, Giuliana
Vallone, atingida no olho por uma bala de borracha. O ultraje foi tão grande
que o fotográfo Yuri
Sardenberg mobilizou
artistas globais para a campanha “ Dói em Todos Nós”, um protesto da chamada sociedade civil contra
a selvageria policial. De repente o país descobriu a existência de uma polícia
violenta, covarde, incompatível com o estado democrático de direitos. O Brasil
acordou! Acordou? Quem estava dormindo, afinal?
Acompanhei a campanha
com indiferença. Não despertou em mim nem a solidariedade de profissão com a
jornalista agredida nem a condição comum de sermos brasileiros "com muito
orgulho e com muito amor". Nem mesmo a frustração comum com o sistema
politico-partidário do país foram suficientes para despertar uma empatia com a
campanha. É que o registro mental que tenho desde quando me entendo por gente é
do corpo negro brutalizado nas favelas, nas prisões, no caveirão. A campanha falhou
em me sensibilizar não porque eu desconsidere o sofrimento das vítimas da
polícia nas ruas do país - para além da cor da pele ou das ideologias que
sustentam - mas porque me falta o registro do terror policial no corpo branco e
nas áreas nobres das nossas metrópoles. O que está em questão aqui é a intensidade
(e persistência) que faz da morte negra uma banalidade e da vitimização branca uma
tragédia.
Manifestante do movimento negro em Salvador/Bahia |
Não quero
desconsiderar o mérito dos protestos juvenis por mais direitos e pela expansão
da democracia participativa. Quero estar do lado certo quando a história
relembrar o momento presente e o meu lado é o do poder popular. Mas esta hora
em que a direita - “forte e raivosa” como diz Douglas Belchior - está nas ruas mobilizando consigo uma classe média branca ressentida com as politicas sociais dos ultimos dez anos, exige uma reflexão sobre o que se entende mesmo como poder popular e movimento
social. A dificuldade em articular uma linguagem que dê conta do que estamos vivendo
reside precisamente na alegria de ver o país nas ruas e na frustração de ver a
pauta negra - pelas ações afirmativas, contra o genocídio e o encarceramento em
massa - invisibilizada. O que o silêncio em torno do asssassinato de 272.422 negros nos últimos dez anos - como revela o Mapa da Violência/2012 - tem a nos dizer sobre os limites e
possibilidades de agendas de lutas coletivas como a que se vê agora?
Pode-se dizer que a agenda dos movimentos sociais foi sequestrada pela direita
e portanto não é apenas a agenda negra que está invisibilizada. Verdade. Mas
não seria o caso do sequestro atual ser também uma reiteração em larga escala
do que o movimento negro enfrenta em tempos de “normalidade”?
O Brasil Acordou
É por isso que o grito
“O Brasil acordou” é totalmente irrelevante para a população negra em seus
encontros mortais com a polícia brasileira. Na verdade o slogan é tão
irrelevante quanto a cantilena dos direitos humanos, da participação cidadã, ou
da defesa da democracia. “Para quem vive na guerra a paz nunca existiu”,
responderia Mano Brown com sua voz inconfundível. A máquina de guerra do Estado
brasileiro mata e continuará matando os negros sem que tais práticas se convertam
em ultraje nacional nem para a direita nem, nem para o centro, nem para a
esquerda.
Os slogans da Polícia da Caatinga na
Bahia (“Pai faz, Mãe cria e Caatinga Mata!”), de São
Paulo (Deus dá a luz a Rota apaga”) e do BOPE no Rio (“Homens de preto qual é
sua missão, entrar na favela e deixar corpos no chão”) são ilustrativos do
lugar que ocupam corpos e geografias racializadas no discurso da ordem e da democracia.
O fato de Sérgio Cabral (PMDB), Geraldo Alckmin (PSDB) e Jaques Wagner (PT)
serem eleitos, reeleitos e não sofrerem nenhum processo de impeachment mesmo
com milhares de mortes em suas mãos dão uma dimensão não da permissividade, mas
da utilidade da morte negra para a existência branca. Se o Estado cria as condições para tais mortes, a chamada
sociedade civil sanciona e lucra com elas uma vez que o assassinato de negras e
negros perpetua a dominação e confere privilégio racial.
Doesse em todos nós,
como quer fazer crer a campanha da ‘sociedade civil’ contra a violência
policial, a vitimização branca nas mãos da polícia não seria tratada como a
aberração de quem acordou agora para uma realidade vivida diuturnamente pela
gente negra. É aqui que a solidariedade política encontra os seus limites: os
brancos têm uma “impossibilidade cognitiva” para entender a experiência negra e
portanto a especificidade da condição negra se perde nas pautas universalistas
ou se invisibiliza nas agendas autoritárias.
Não que os negros e
negras não estejam lutando nas praças pela redução das tarifas dos transportes
públicos, por um SUS mais forte, e pela educação pública, gratuita e de
qualidade. Estão!. Mas onde estavam os brancos quando a gente negra estava chorando
seus mortos nas favelas brasileiras? Onde estavam os milhares de manifestantes
quando do terror policial nas periferias de Salvador, Sao Paulo, Rio de
Janeiro, para nomear as três maiores cidades do país? Pois bem, o privilégio
branco não se dá apenas nos aspectos econômicos, mas na definição mesma da dor
doível, da “vida vivível” e da “morte chorável” – em uma tradução livre dos termos
de Judith Butler.
Dois exemplos adcionais para um ponto
final: a) em um texto comovente Douglas Belchior narra sua frustração e revolta
ao ver a bandeira da Uneafro-Brasil ser arrancada de suas mãos e queimada em
uma passeata no centro de São Paulo. Belchior localiza na direita ‘forte e
raivosa’ as tentativas de silenciar a agenda do movimento. Certo, mas não custa
lembrar que as contínuas ações das entidades negras contra o terror policial raramente
encontram eco nas esquerdas organizadas. A favor da direita pode se argumentar que
ela tem os campos bem demarcados: anti-negro, anti-pobre, anti-mulher,
anti-gays, anti-vida. Mas no caso da
esquerda, se põe para nós negras e negros o preço a pagar “para não fragmentar
a luta de classes”.
b) Enquanto ocorria uma manifestação na periferia
de São Paulo, no último dia 23 de junho, policiais da Rota assassinaram três
pessoas em suposto confronto. A Rota é a polícia intocável do governador tucano Geraldo Alckmin. O que os dois casos têm em comum? Elas apontam para o limbo em
que se encontra a gente negra: entre uma pauta invisibilizada nas ruas e a
morte invisibilizada na periferia. Ta aí porque a dor não “dói em todos nós”. Em todos nós os cambaus, cara branca!
*Jaime Amparo Alves,
jornalista, ativista do movimento negro e doutor em Antropologia Social,
Universidade do Texas, Austin.
Creditos:Charge (1) Latuff, Foto (2) Raquel Luciana de Souza
Um comentário:
Dói ler, porque dói saber que é verdade...
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