22 de jun. de 2013

A primavera brasileira ou inverno chileno?

ESTAMOS NOS TRÓPICOS!

Jaime Amparo Alves

As mordomias insidiosas dos parlamentares, os privilégios do judiciário, as oligarquias regionais e as frustrações dos brasileiros com os gastos da Copa do Mundo são o caldo de uma revolta que tem sacudido o país e deixado as autoridades atônitos. Com agenda difusa e com uma composição bem diversa - dos ultra-conservadores exigindo a volta dos generais aos movimentos sociais exigindo a ampliação de direitos - as manifestações deixam dúvidas sobre a estação política que estamos vivendo. Deveríamos estar contentes em ver finalmente a multidão ocupar as ruas do país e exigir mudanças, ou preocupados com os rumos de um movimento que vai sendo apropriado pela direita brasileira? Primavera ou inverno sombrio? Para usar a expressão de Levi Strauss, estamos nos "tristes trópicos"...
Nenhum dos poderes está sendo salvo das críticas, mas pelo menos na cobertura da mídia o alvo é bem definido: o governo. Mas... que governo, afinal? O de Geraldo Alckmin (PSDB) que tem em São Paulo a polícia mais violenta, a maior população carcerária e um dos piores transportes urbanos do país? Ou o governo de Sérgio Cabral (PMDB), a quem igualmente se pode creditar milhares de mortes de jovens negros nas periferias do Rio de Janeiro e uma rede de hospitais públicos sucateada? Ou ainda as Minas Gerais do senador Aécio Neves (PSDB), réu em ação civil que investiga o desvio de R$ 4,3 bilhões da área da saúde daquele estado?
Apesar das manifestações serem incisivas contra governantes de todas as siglas partidárias, que ninguém se iluda: sem desconsiderar o protagonismo das organizações populares e a legítima atuação da juventude levando os governadores e prefeitos a devolverem aos gritos os ajustes das já extorsivas tarifas, muitos dos protestos que se seguirão até a Copa do Mundo em 2014 (se houver tal evento) serão energizados pelo moralismo dirigido da mídia e por uma classe média ressentida com as políticas sociais dos últimos dez anos do governo federal. A paradigmática cobertura dos protestos, pela grande mídia, dão uma dimensão do problema:
Na tarde da última quinta-feira 13 de junho José Luiz Datena, o âncora do horripilante Brasil Urgente, fez uma daquelas enquetes cretinas em que a pergunta já leva a resposta, tentando arrancar do telespectador a condenação dos protestos. Perguntava sem constrangimentos: "Você é a favor deste tipo de protesto?" A resposta foi um taxativo "sim" (2090 x 1477). Inconformado, Datena tentou mais uma vez: "você é a favor de protesto com baderna?" Não adiantou: 2179 votos a favor, e 915 contra deixaram o apresentador constrangido. Datena engoliu a enquete e começou a apoiar a manifestação, até então tratada como vandalismo. O editorial "Retomar a Paulista", do jornal Folha de S. Paulo do dia 13 de junho também é paradigmático: Segundo a Folha, a manifestação do "grupelho" não tinha outra intenção que "vandalizar os equipamentos públicos". O moribundo Estadão não ficou atrás. Como era de se esperar, o jornal também caracterizou os manifestantes como desordeiros e desocupados. Passaram a "apoiar" o movimento quando viram ali a possibilidade de atingir o governo federal e o PT.
O mesmo script seguiu a imprensa televisiva, com destaques para a TV Globo e a Rede Record. Da mea culpa dissimulada de Arnaldo Jabor, ao cinismo de Marcelo Resende, a mídia começou a investir na retórica de uma campanha cívica para limpar o Brasil da corrupção. Houve reações: Jornalistas da TV Globo foram expulsos aos gritos de "fora Rede Globo, o povo não é bobo" e os carros de transmissão da Rede Record e do SBT arderam em chamas em praça pública. Como evidencia a cobertura cretina da Folha de S. Paulo - mesmo depois de ter seus repórteres agredidos pela Polícia Militar - o rei pode estar nú mas não está morto. Os próximos protestos durante a Copa das Confederações e os que virão com ainda mais força durante a Copa do Mundo de 2014 (se houver tal evento) irão mostrar uma mídia comprometida com o caos. A cobertura da TV Globo, em clima festivo, na noite da última quinta-feira, 20 de junho, dispensa comentários extras sobre o papel da mídia no que vem por aí.
CAVALO SELADO
Como os movimentos sociais podem ocupar as ruas e praças sem ver suas pautas sendo sequestradas pelos meios de comunicação em busca do caos no país? Como distinguir a raiva legítima contra um Congresso Nacional caro, ineficiente, longe dos anseios populares e os interesses corporativistas daqueles que querem judicializar a política e distanciar o povo das decisões sobre o seu futuro? Como os movimentos sociais em suas diferentes vertentes identitárias - negro, indígena, de mulheres, glbt, sem-terra, sem-voz - podem "aproveitar" a rebeldia digital da juventude para fazer valer suas pautas? (Aqui está um desafio especial para o movimento negro uma vez que mesmo com a exclusão gritante de jovens negros das universidades e as alarmantes taxas de assassinatos nas periferias, o que desperta a solidariedade política são as imagens dos jovens brancos de classe média sendo brutalizados pela polícia). Finalmente, como separar a crítica incisiva e urgente à agenda reformista do governo Dilma das estratégias golpistas da oposição e de uma classe média ressentida pelas políticas de inclusão social que tiraram 40 milhões de brasileiros da pobreza nos últimos dez anos? Dito de outra forma, o que fazer quando defender o governo dos ataques dos tubarões da direita é restringir o horizonte politico das esquerdas?
Meu objetivo aqui é mais simples e modesto do que responder a estas questões. Quero apenas chamar a atenção para o perigo que ronda o país com as aventuras golpistas e para a covardia política do PT que pode inviabilizar o que resta do governo Dilma Rousseff. Pelo menos no que diz respeito 'as intervenções dos movimentos sociais, os protestos podem ser lidos como um ultimato a Dilma: ou governa com o povo ou o fantasma de 64 volta a nos assombrar. Talvez seja a hora da presidenta vir à televisão e reintroduzir na agenda pública a série de demandas populares engavetadas até aqui. Aqui vão meus 0,20 centavos de contribuição:
Como Lula, Dilma possui(a) a popularidade dos sonhos do presidente sociólogo, mesmo na faixa da reacionária classe média. A popularidade, no entanto, não foi suficiente para fazer a presidenta levar a cabo as medidas necessárias para aprofundar as transformações iniciadas em 2003. Ao fazer a opção de barganhar apoios no precário sistema de alianças políticas, Dilma está perdendo a oportunidade histórica de governar com o povo nas ruas. As últimas lambanças do PMDB e as chantagens do PSB mostram que a presidenta está em uma piscina de tubarões. Dilam tem horror a estas alianças mas está convencida que este é o único jeito de garantir a "governabilidade". Tal como Lula, a presidenta não quer se indispor com temas espinhosos tais como a reforma política, um novo marco nas comunicações sociais, a reforma agrária e urbana, a reestruturação do SUS (começando com a vinda de médicos cubanos para o país), somente para nomear alguns.
No caso do novo marco nas comunicações, o governo Dilma não apenas engavetou o projeto do ex-ministro Franklin Martins como o Ministro Paulo Bernardo se converteu em um cínico defensor da "liberdade de empresa", dando voz a uma falsa incompatibilidade entre as propostas de democratização dos meios de comunicação e a liberdade de imprensa. O ministro se posicionou contra um a pauta cara aos movimentos sociais criminalizados pelos conglomerados de mídia. O partido mais perseguido pelos meios de comunicação de massa é o mais subserviente a eles: cotas publicitárias milionárias, perseguição 'as radios comunitárias, engavetamento da CPI da Veja e até o tributo oficial do Ministro da Educação Aloysio Mercadante a Folha de . Paulo, uma empresa jornalística comprometida até a cabeça com o golpe de 1964. Apesar das concessões, o resultado esta aí: o terrorismo do jornalismo econômico anula os penosos ganhos da política fiscal, a seletiva cobertura dos escândalos de corrupção invisibiliza a agenda positiva do governo, a pauta conservadora mina o seu capital politico.
Mais emblemático ainda da covardia política é o recuo no projeto de envio de médicos cubanos ás regiões mais pobres do país. Para viabilizar sua candidatura ao governo paulista em 2014, Alexandre Padilha recuou após a pressão do Conselho Federal de Medicina e dos partidos de oposição PPS e PSDB. O governo recuou mesmo sabendo que a maioria da população já está fazendo os cálculos dos gasto estratosféricos com a Copa do Mundo em contraste com as condições dos hospitais públicos país afora. Alguém teria que dizer ao ministro Gilberto Carvalho, então, que quem foi 'as ruas contra o aumento na tarifa dos ônibus também irá na defesa dos médicos cubanos e de outras pautas urgentes. É verdade que não haverá a adesão total da classe média, mas os movimentos sociais organizados estarão lá.
Ineficaz argumentar que o governo federal já atualizou a tabela de repasse do SUS e que esta é uma responsabilidade compartilhada com todos os entes federativos. Assim como na desoneração da cesta básica e dos tributos dos transportes, as mafias locais não repassam as contínuas isenções fiscais oferecidas pelo governo. Aí, na hora da dor, é Brasília que vem 'a cabeça.
A COPA DO MUNDO É NOSSA?
No que diz respeito 'a Copa do Mundo per si, os custos sociais do evento são maiores do que qualquer benefício futuro e talvez seja a hora de devolver o abacaxi à FIFA. Não queremos a Copa. A preparação do mundial se converteu em um conjunto de violações de direitos humanos pelos quais os governos federal e estaduais devem responder. Remoções de comunidades do entorno dos estádios, criminalização dos movimentos sociais, invasão militar e assassinatos nas favelas, além dos altos custos econômicos das obras evidenciam o saldo macabro do evento. O governo perdeu a oportunidade de coordenar uma agenda de reforma urbana, em diálogo com os movimentos sociais, que privilegiasse o direito 'a cidade. Os novos equipamentos esportivos irão não apenas aprofundar as desigualdades urbanas como já estão sendo transferidos para a iniciativa privada (ver a tentativa de licitação fraudulenta do Maracanã e os "patrocinadores" das novas arenas Brasil afora).
A Lei da Copa representou uma agressão 'a soberania do país criando uma série de regalias para os representantes da FIFA. 'A base da chantagem, Joseph Blatter e sua turma impuseram goela abaixo das autoridades brasileiras ridículas exigências que vão da qualidade dos assentos 'a proibição do comércio informal no entorno dos estádios. Ameaçando dar um "chute no traseiro" do ministro dos Esportes, a FIFA recebeu a total garantia de construção de estádios ultramodernos, a flexibilização das leis de proteção ao consumidor e o ressarcimento pelo governo brasileiro por qualquer prejuízo que a organização venha a ter.
Dilma não pode atender a todas as exigências que aparecem nas redes sociais tais como a aprovação dos projetos de lei que transformam a corrupção em crime hediondo ou o fim do foro privilegiado. Tampouco pode enviar Sarney de volta ao Maranhão, exorcizar Feliciano, moralizar o judiciário... Estas são competências distintas de cada poder da República, embora o seu partido possa e deva influir em tais demandas. Ainda assim, sua sobrevivência política vai depender da capacidade de dialogar com os movimentos sociais para responder às frustrações populares nas áreas críticas do governo: segurança, saúde, educação, mobilidade urbana.
Desde 2003 os movimentos sociais da cidade e do campo têm sido reféns de uma lógica política do "para não dar combustível 'a direita, vamos poupar o PT". Os horrores neoliberais dos oito anos do governo FHC foram a referência para o cálculo politico. O problema é que já se vão dez anos de concessões estratégicas e de frustrações com um projeto político reformista e refém da reeleição. Talvez o momento ensine a presidenta e a sua equipe que a direita não irá fazer as concessões políticas que a fragmentada esquerda tem feito. No final das contas, a frustração com Dilma é a mesma desde 2003 quando o presidente metalúrgico chegou ao poder. Oxalá tivéramos um pouco da revolução bolivariana. Que lástima, não há como se aconselhar com o comandante Chaves!

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