30 de jul. de 2015

Delinquência Jornalística: mídia corporativa, manipulação editorial e ódio ao Partido dos Trabalhadores

Por Jaime Alves e Raquel de Souza

A delinquência jornalística da grande mídia brasileira não tem limites. A mídia brasileira é um desastre ético-moral. Exemplo? Surpreende a agressiva campanha para destruir a biografia do ex-presidente Lula da Silva e tornar inviável o já desastroso segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. A segunda tarefa é relativamente fácil. Dilma e sua equipe parecem resignados a morrer abraçados a um projeto político que busca apaziguar o “Deus-Mercado” com ajustes e concessões que afetam diretamente os mais pobres. Se por um lado as ações do governo para minimizar a “crise” internacional são deturpadas no noticiário econômico, por outro o governo abraça a “liberdade de imprensa” como um valor absoluto que, portanto, não pode ser confrontado. Dilma continua na firme e autofágica crença de que o controle remoto é o melhor regulador dos meios.

Que a regulação da mídia não seja pauta do governo não surpreende, principalmente em função do esfarelamento da base aliada. O que não é óbvio ou racional é a sua estratégia política de comunicação. O acordo para flexibilizar jornadas de trabalho e evitar demissões é deturpado pela mídia e se manifesta na boca do povo como “governo reduz salários dos trabalhadores”; uma vez que o governo não reclama para si as operações da Polícia Federal, elas são canibalizadas pelo noticiário como ações contra o governo “mais corrupto da história”, e não como um trunfo da transparência no combate à corrupção. A biografia de Dilma Rousseff autoriza a presidenta a ocupar a rede nacional de televisão e apresentar à sociedade um saldo de todas as ações da PF esvaziando o discurso moralista da oposição e da mídia corporativa. Dilma, ao contrário, parece resignada a conceber a PF como uma entidade exógena ao seu governo.

No caso do ex-presidente Lula da Silva, o empenho da mídia para criar factoides revela um amadorismo insultante. O Globo e a Época, por exemplo, têm se esforçado para encontrar um elo entre Lula e a Operação Lava Jato. Requentar matérias antigas, fazer associação entre eventos díspares, sobredimensionar procedimentos-padrão do Ministério Público dando vazão às ambições pessoais de procurador com carreira profissional no mínimo curiosa, e o esforço orquestrado no campo semântico para que termos como “crime”, “corrupção” e “corrupto” sejam incessantemente associados ao Partido dos Trabalhadores e ao seu líder máximo fazem parte do esforço concertado de destruição da biografia de Lula e da trajetória do PT.

Autoritarismo e intolerância

Agressiva em seu esforço em associar Lula aos escândalos políticos, a revista Veja já chegou ao extremo de invadir a casa de parentes do ex-presidente para revelar uma suposta festa milionária do seu sobrinho. Desmascarada a fraude, a revista soltou uma nota de algumas linhas se desculpando ao presidente e à sua família “por quaisquer transtornos que possa ter ocasionado”. Veja minimiza o incidente como “um transtorno”, um errinho do repórter Ulisses Campbell, autor da matéria fantasiosa.  

Veja está bem acompanhada no que diz respeito à delinquência da imprensa brasileira. Do “podemos tirar se quiser”, da agência de notícias Reuters em referência aos escândalos na Petrobras sob o governo FHC, à omissão do nome do senador José Serra – pelo Estadão – em anotações de Marcelo Odebrecht identificadas pela Polícia Federal, a imprensa brasileira vai se especializando cada vez mais em produtora de fraudes jornalísticas. Se o discurso da imparcialidade ainda era vendido como estratégia de propaganda, agora, mais do que nunca, a imprensa está “transparente”. Transparente, para não deixar dúvidas, no sentido de nua, sem verniz, sem compromisso com o mito que a legitimava. De rabo preso com o entrevistado, a Folha de S.Paulo nos dá a dimensão exata desse abandono do “mito”: os documentos vazados pela PF dão conta do “acerto” entre a assessoria de Marcelo Odebrecht e o repórter da Folha para realizar uma entrevista leve, sem assuntos polêmicos e que oferecesse a oportunidade para o empreiteiro “dar seu recado”.

Até mesmo o Jornal Nacional, que em reação à queda de audiência modificou o seu formato para ficar mais “informal”, tem utilizado o recurso de concentrar as notícias relacionadas à Operação Lava Jato no horário próximo à novela das 9, quando os telespectadores mais céticos em relação ao discurso anticorrupção começam a sintonizar para assistir à novela do horário nobre. O ator-jornalista William Bonner aparece agora mais cordial e mais consternado com a “praga da corrupção” que assola o país.

Globo e companhia alimentam um protofascismo que se expressa tanto na estigmatização dos beneficiários de programas sociais, como o Bolsa-Família, como também nas ameaças a figuras e simpatizantes do PT em espaços públicos. A misoginia é outra manifestação deste processo alimentado pelo frenesi anti-pestista. Dilma tem sido criticada não apenas por ser presidenta, mas por ser mulher “severa”, intransigente”, inflexíveis”, características consideradas positivas em chefes de Estado do sexo masculino. Movimentos como o “Vem pra rua”, mobilizados em torno do perigoso patriotismo verde-amarelo, e o panelaço contra a presidenta Dilma expressam também o autoritarismo e a intolerância que chocam o ovo da serpente.

Sofisticação tecnológica e canalhice editorial

Os desdobramentos da Operação Lava Jato podem até comprovar as “sentenças” já decretadas pela mídia corporativa. Pode ser que as investigações tragam à tona novos escândalos envolvendo figuras proeminentes do Partido dos Trabalhadores. Ainda assim, Lula da Silva já é um fenômeno por sobreviver a uma máquina de guerra brutal, sem regras mínimas de combate. Vários nomes do PT foram e talvez sejam condenados, mas Lula, com seu capital político, continua sendo o alvo principal da saga golpista. Dificilmente Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor, sobreviveria a tamanha voracidade midiática. Imagine, se puder, o tempo de sobrevida política de alguns opositores de “tudo que está aí” se a imprensa dedicasse tamanha diligência para desvendar suas práticas predatórias? Um dos papéis fundamentais da atividade jornalística é fazer perguntas. No entanto, a imprensa se recusa a fazer algumas perguntas cruciais para entendermos a corrupção no Brasil porque ela teria que se colocar no lugar incômodo de questionar suas próprias práticas delinquenciais não apenas no jornalismo criminoso, mas também no campo fiscal, como os escândalos da Fifa, do HSBC e de fraudes na Receita Federal.

Os estudiosos da mídia podem discordar sobre o papel dos meios na construção de consensos, aquela velha discussão ainda não resolvida entre o que Umberto Eco chamou de “apocalípticos e integrados”. As quatro vitórias petistas – com o peso das articulação políticas nas redes sociais – seriam um exemplo de que os consumidores de notícias não são agentes passivos. Eles estrategicamente negociam, recusam, dão outro significado, e principalmente produzem contra-narrativas.

Talvez estejamos entre os “apocalípticos”, mas o eco das palavras “mensalão”, “corrupção”, “Petrobrás” e “Lava Jato”, incessantemente repetidas, criou uma rede de significados na qual o Partido dos Trabalhadores está aprisionado. Se por um lado os eleitores do PT são discursivamente associados à miséria, ao voto de cabresto e ao analfabetismo político – Diogo Mainardi, Cristina Lobo e Merval Pereira merecem crédito aqui –, por outro, a mídia fomenta e dá vazão às frustrações de uma classe média ressentida com as (ainda que precárias) conquistas sociais dos últimos doze anos. Os espaços quase monocromáticos da classe média branca começaram a ser parcamente diversificados em função de programas sociais que começaram a arranhar a hierarquia perversa do país. Nesse âmbito, para tal crime não há absolvição.

Na verdade, a narrativa midiática de estigmatização dos eleitores do PT não vem de hoje. Ela começou lá atrás e talvez tenha ficado mais pornográfica nas últimas eleições quando o Nordeste foi “responsabilizado” pela eleição de Dilma, ainda que Aécio Neves tenha perdido em seu estado natal e no Rio de Janeiro, seu estado de residência. O movimento de ruptura democrática estimulado pelas forças derrotadas nas eleições de 2014 revela não apenas uma vocação autoritária, como também uma terminante recusa a aceitar que na democracia o voto de membros de diferentes classes sociais tem o mesmo valor. O esforço midiático de demonização do PT, aliado ao impopular ajuste fiscal, se reflete nos índices perigosíssimos de aprovação do governo Dilma Rousseff, criando terreno fértil para a supuração de articulações políticas que almejam o impeachment.

Se as eleições de 2014 não foram suficientemente “sofridas” para levar a presidenta Dilma Rousseff a repensar as estratégias de comunicação do seu governo, elas pelo menos serviram para deixar os campos muito mais demarcados no que diz respeito à mídia corporativa: a prática jornalística, como trabalho de investigação criteriosa, checagem de fontes e equilíbrio de perspectivas, foi definitivamente abandonada. O que temos agora é a criminosa e calculada produção de verdades, sem consequências para as empresas jornalísticas. Uma mera nota de rodapé, na edição seguinte, já faz parte do cálculo do jornalismo delinquente. Quiçá o momento presente não seja tão mau para as forças progressistas do país. A mídia corporativa está desnuda: sofisticação tecnológica e canalhice editorial.
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originalmente publicado em Observatório da Imprensa, Disponível aqui: http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/a-grande-midia-e-o-odio-ao-pt/