1 de nov. de 2023

Palestina: um caso de genocídio sob a ótica de um representante da ONU

 Dada a urgência do momento e o silêncio criminoso da mídia grande, resolvi traduzir o apelo dramático de Craig Mokhiber. Genocidio Nunca Mais!* 


 Carta-Renúncia

Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU

Craig Mokhiber



28 de Outubro de 2023

 

Caro Alto Comissário,

 

Esta será a última comunicação oficial que lhe dirijo na qualidade de Diretor do Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos em Nova Iorque.

 

Escrevo num momento de grande angústia para o mundo, incluindo para muitos dos nossos colegas. Mais uma vez, estamos a assistir ao desenrolar de um genocídio perante os nossos olhos e a Organização que servimos parece impotente para o impedir. Como alguém que investigou os direitos humanos na Palestina desde a década de 1980, que viveu em Gaza como conselheiro da ONU para os direitos humanos na década de 1990 e que efectuou várias missões de direitos humanos ao país antes e depois disso, esta situação é profundamente pessoal para mim.

 

Também trabalhei nestes escritorios durante os genocídios contra os Tutsis, os muçulmanos da Bósnia, os Yazidi e os Rohingya. Em todos os casos, quando a poeira assentou sobre os horrores que tinham sido perpetrados contra populações civis indefesas, tornou-se dolorosamente claro que tínhamos falhado no nosso dever de cumprir os imperativos de prevenção de atrocidades em massa, de proteção dos vulneráveis e de responsabilização dos perpetradores. E assim tem sido com as sucessivas vagas de assassinatos e perseguições contra os palestinianos ao longo de toda a existência da ONU.

 

Senhor Alto Comissário, estamos falhando novamente.

 

Como advogado de direitos humanos com mais de três décadas de experiência neste domínio, sei bem que o conceito de genocídio tem sido frequentemente objeto de abusos políticos. Mas o atual massacre em massa do povo palestiniano, enraizado numa ideologia colonial etno-nacionalista dos colonos, na continuação de décadas de perseguição e purga sistemáticas, baseadas inteiramente no seu estatuto de árabes, e associado a declarações explícitas de intenções por parte dos líderes do governo e das forças armadas israelitas, não deixa margem para dúvidas ou debate. Em Gaza, casas de civis, escolas, igrejas, mesquitas e instituições médicas são atacadas de forma arbitrária e milhares de civis são massacrados. Na Cisjordânia, incluindo a Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e reatribuídas com base exclusivamente na raça, e os violentos pogroms de colonos são acompanhados por unidades militares israelitas. Em todo o território, o Apartheid impera.


Este é um caso exemplar de genocídio. O projeto colonial europeu, etno-nacionalista e de colonização na Palestina entrou na sua fase final, para a destruição acelerada dos últimos vestígios da vida vida autóctone indígena na Palestina. Para além disso, os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e de grande parte da Europa, são totalmente cúmplices deste terrível ataque. Estes governos não só se recusam a cumprir as suas armando ativamente o ataque, fornecendo apoio económico e de informações e dando cobertura política e diplomática às atrocidades de Israel.


Em consonância com este facto, os meios de comunicação social ocidentais, cada vez mais capturados e dependentes do Estado, violam abertamente o artigo 20º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, desumanizando continuamente os palestinianos para facilitar o genocídio e difundindo propaganda de guerra e de defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitui um incitamento à discriminação, à hostilidade e à violência. As empresas de comunicação social sediadas nos EUA estão a suprimir as vozes dos defensores dos direitos humanos, ao mesmo tempo que amplificam a propaganda pró-Israel. Os lobbies de Israel e os GONGOS estão assediando e difamando os defensores dos direitos humanos, e as universidades e os empregadores ocidentais estão colaborando com eles para punir aqueles que ousam falar contra as atrocidades. No rescaldo deste genocídio, é necessário cobrar também destes actores, tal como aconteceu com a rádio Milles Collines no Ruanda.

 

Nestas circunstâncias, a exigência de uma ação eficaz e baseada em princípios por parte da nossa organização é maior do que nunca. Mas nós não estamos respondendo ao desafio. O Conselho de Segurança, que tem um poder protetor de execução, foi novamente bloqueado pela intransigência dos EUA, o SG está a ser atacado pelo mais leve dos protestos e os nossos mecanismos de direitos humanos estão a ser alvo de um ataque calunioso contínuo por parte de uma rede online de impunidade organizada. 

 

Décadas de distração com as promessas ilusórias e em grande parte dissimuladas de Oslo desviaram a Organização do seu dever fundamental de defender o direito internacional, os direitos humanos internacionais e a própria Carta. O mantra da "solução dos dois Estados" tornou-se uma piada aberta nos corredores da ONU, tanto pela sua total impossibilidade de facto, como pela sua total incapacidade de ter em conta os direitos humanos inalienáveis do povo palestiniano. O chamado "Quarteto" não passou de uma folha de figueira para a inação e para a subserviência a um status quo brutal. A deferência (escrita pelos EUA) em relação aos "acordos entre as próprias partes" (em vez do direito internacional) foi sempre uma manobra transparente, concebida para reforçar o poder de Israel sobre os direitos dos palestinianos ocupados e despossuídos.

 

Alto Comissário, cheguei a esta Organização pela primeira vez na década de 1980, porque encontrei nela uma instituição baseada em princípios e normas que estava diretamente do lado dos direitos humanos, incluindo nos casos em que os poderosos EUA, Reino Unido e Europa não estavam do nosso lado. Enquanto o meu próprio governo, as suas instituições subsidiárias e grande parte dos meios de comunicação social norte-americanos continuavam a apoiar ou a justificar o apartheid sul-africano, a opressão israelita e os esquadrões da morte da América Central, a ONU defendia os povos oprimidos dessas terras. Tínhamos o direito internacional do nosso lado. Tínhamos os direitos humanos do nosso lado. Tínhamos os princípios do nosso lado. A nossa autoridade estava enraizada na nossa integridade. Mas não mais.

 

Nas últimas décadas, partes importantes da ONU renderam-se ao poder dos EUA e ao medo do lobby de Israel, abandonando estes princípios e afastando-se do próprio direito internacional. Perdemos muito com este abandono, nomeadamente a nossa própria credibilidade a nível mundial. Mas foi o povo palestiniano que sofreu as maiores perdas em resultado dos nossos fracassos. É uma ironia histórica impressionante que a Declaração Universal dos Direitos do Homem tenha sido adoptada no mesmo ano em que a Nakba foi perpetrada contra o povo palestiniano. Ao comemorarmos o 75º aniversário da DUDH, faríamos bem em abandonar o velho cliché de que a DUDH nasceu das atrocidades que a precederam e em admitir que nasceu ao lado de um dos mais atrozes genocídios do século XX, o da destruição da Palestina. De certa forma, os autores da Constituição prometeram direitos humanos a todos, exceto ao povo palestiniano. E lembremo-nos também de que a própria ONU tem o pecado original de ajudar a facilitar a desapropriação do povo palestiniano ao ratificar o projeto colonial europeu que se apoderou das terras palestinianas e as entregou aos colonos. Temos muito por que reparar.

 

Mas o caminho para a reparacao é claro. Temos muito a aprender com a posição de princípio assumida em cidades de todo o mundo nos últimos dias, quando massas de pessoas se levantam contra o genocídio, mesmo correndo o risco de serem espancadas e presas. Os palestinianos e os seus aliados, os defensores dos direitos humanos de todos os quadrantes, as organizações cristãs e muçulmanas e as vozes judaicas progressistas que dizem "não em nosso nome", estão todos a liderar o caminho. Tudo o que temos de fazer é segui-los.  Ontem, a poucos quarteirões daqui, a Grand Central Station de Nova Iorque foi completamente tomada por milhares de defensores judeus dos direitos humanos, solidários com o povo palestiniano e exigindo o fim da tirania israelita (muitos arriscando a prisão, no processo). Ao fazê-lo, despojaram num instante o argumento da propaganda hasbara israelita (e o velho tropo antissemita) de que Israel representa de alguma forma o povo judeu. Não representa. E, como tal, Israel é o único responsável pelos seus crimes. Sobre este ponto, vale a pena repetir, apesar das difamações do lobby israelita em contrário, que a crítica das violações dos direitos humanos por parte de Israel não é antissemita, tal como a crítica das violações sauditas não é islamofóbica, a crítica das violações de Myanmar é anti-budista ou a crítica das violações indianas é anti-hindu. Quando tentam silenciar-nos com calúnias, temos de erguer a nossa voz, não de a baixar. Espero que concorde, Senhor Alto Comissário, que é isto que significa confrontar o poder com a verdade.

 

Mas também encontro esperança nos sectores da ONU que se recusaram a comprometer os princípios da Organização em matéria de direitos humanos, apesar das enormes pressões para o fazer. Os nossos relatores especiais independentes, as comissões de inquérito e os peritos dos órgãos de tratados, juntamente com a maior parte do nosso pessoal, continuaram a defender os direitos humanos do povo palestiniano, mesmo quando outras partes da ONU (mesmo ao mais alto nível) baixaram vergonhosamente a cabeça perante o poder. Na qualidade de guardiães das normas e padrões dos direitos humanos, o ACDH tem o dever particular de defender esses padrões. A nossa função, creio eu, é fazer com que a nossa voz seja ouvida, desde o Secretário-Geral até ao mais recente recruta da ONU, e horizontalmente em todo o sistema da ONU, insistindo em que os direitos humanos do povo palestiniano não são passíveis de debate, negociação ou compromisso em parte alguma sob a bandeira azul.

 

Como seria, então, uma posição baseada nas normas da ONU? Em que trabalharíamos se fôssemos fiéis às nossas admoestações retóricas sobre os direitos humanos e a igualdade para todos, a responsabilização dos perpetradores, a reparação das vítimas, a proteção dos vulneráveis e a capacitação dos detentores de direitos, tudo isto no âmbito do Estado de direito? A resposta, creio, é simples - se tivermos a lucidez de ver para além das cortinas de fumo propagandísticas que distorcem a visão de justiça a que estamos obrigados, a coragem de abandonar o medo e a deferência para com os Estados poderosos e a vontade de assumir verdadeiramente a bandeira dos direitos humanos e da paz. É certo que se trata de um projeto a longo prazo e de uma subida íngreme. Mas temos de começar agora ou render-nos-emos a um horror indescritível. Vejo dez pontos essenciais:

 

1.Ação legítima: Em primeiro lugar, nós, nas Nações Unidas, temos de abandonar o paradigma falhado (e em grande parte falso) de Oslo, a sua solução ilusória de dois Estados, o seu Quarteto impotente e cúmplice e a sua subjugação do direito internacional aos ditames de uma presumível conveniência política. As nossas posições devem basear-se sem reservas nos direitos humanos internacionais e no direito internacional.

 

2.Clareza de visão: Temos de deixar de fingir que se trata apenas de um conflito de terras ou de religião entre duas partes beligerantes e admitir a realidade da situação em que um Estado desproporcionadamente poderoso está a colonizar, a perseguir e a desapossar uma população indígena com base na sua etnia.

 

3.Um Estado único baseado nos direitos humanos: Temos de apoiar a criação de um Estado único, democrático e secular em toda a Palestina histórica, com direitos iguais para cristãos, muçulmanos e judeus e, por conseguinte, o desmantelamento do projeto racista e colonial dos colonos e o fim do apartheid em todo o território.

 

4.Lutar contra o apartheid: Temos de reorientar todos os esforços e recursos da ONU para a luta contra o apartheid, tal como fizemos com a África do Sul nos anos 70, 80 e início dos anos 90.

 

5.Regresso e indemnização: Temos de reafirmar e insistir no direito ao regresso e à plena indemnização de todos os palestinianos e suas famílias que vivem atualmente nos territórios ocupados, no Líbano, na Jordânia, na Síria e na diáspora em todo o mundo.

 

 

Isso levará anos para conseguir, e as potências ocidentais combater-nos-ão a cada passo do caminho, pelo que temos de ser firmes. No imediato, temos de trabalhar para um cessar-fogo imediato e para o fim do cerco de longa data a Gaza, de nos opormos à limpeza étnica de Gaza, Jerusalém e da Cisjordânia (e de outros locais), de documentar o ataque genocida em Gaza, de ajudar a levar ajuda humanitária maciça e a reconstrução aos palestinianos, de cuidar dos nossos colegas traumatizados e das suas famílias e de lutar como o diabo por uma abordagem baseada em princípios nos gabinetes políticos da ONU.

 

O fracasso da ONU na Palestina até à data não é razão para nos retirarmos. Pelo contrário, deve dar-nos a coragem de abandonar o paradigma falhado do passado e abraçar plenamente uma via mais baseada em princípios. Enquanto ACDH, juntemo-nos corajosa e orgulhosamente ao movimento anti-apartheid que está a crescer em todo o mundo, juntando o nosso logótipo à bandeira da igualdade e dos direitos humanos para o povo palestiniano. O mundo está a ver. Todos nós seremos responsáveis pela nossa posição neste momento crucial da história. Coloquemo-nos do lado da justiça.

 

Agradeço-lhe, Senhor Alto Comissário Volker, por ter ouvido este último apelo da minha secretária. Deixarei o Gabinete dentro de alguns dias pela última vez, após mais de três décadas de serviço. Mas, por favor, não hesitem em contactar-me se eu puder ser útil no futuro.

 

Atenciosamente,


Craig Mokhiber



*tradução livre, Jaime Alves  / DeepL

11 de ago. de 2023

Os 'Oito de Janeiro' do Povo Negro.. ou uma carta aberta ao Presidente Lula

 Por Rosangela Martins & Jaime A. Alves

*Originalmente publicado no Jornal Brasil de Fato

Sr. Presidente, a sua eleição representou a vitória da democracia sobre o obscurantismo bolsonarista que nos últimos quatro anos desprezou a ameaça sanitária da covid-19, autorizou a expansão dos CACs, e celebrou as mortes de civis nas famigeradas operações policiais país afora. O odioso culto ao militarismo foi tão tosco e selvagem que conseguiu reunir condenações morais até mesmo em meios mais à direita do espectro político. Nosso medo, presidente Lula, é que o pêndulo da democracia, levado à extremidade nos últimos quatro anos, nos faça calibrar a balança em um 'ponto de equilíbrio' bem familiar: o da normalidade antinegra. 

Presidente, dada sua trajetória humanista, nos urge perguntar: os assassinatos de quarenta e seis jovens predominantemente negros pelas forças policiais da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, no transcurso da primeira semana de agosto de 2023, se qualificariam como ameaça à ordem democrática? Com quantos assassinatos negros se faz um Oito de Janeiro? Até a escrita desta carta, já se contabilizam 19 assassinatos na Bahia, 10 no Rio de Janeiro e 16 no litoral paulista e, dado o apetite por sangue, não há motivo para acreditar que as 'baixas' das atuais 'operações' parem por aí.

Em São Paulo, as denúncias de moradores das favelas são de que a polícia promete assassinar a sessenta (60!) pessoas.  Os movimentos de direitos humanos também denunciam torturas, desaparições e corpos encontrados em outras favelas. Seria essa uma técnica de difusão espacial da violência para evitar a contabilidade macabra? Os ministérios de Direitos Humanos e Justiça/Segurança Pública vão esperar para ver? Nos acostumamos com um silêncio, presidente Lula, não próximo à estupidez, mas sim à covardia.

Enquanto isso, ficamos à espera de algum milagre institucional que faça da 'crise' atual o início de um novo paradigma: uma força-tarefa que acompanhe os familiares de vítimas da violência do Estado, a criação de uma Autoridade Nacional Permanente com poder de polícia que não dependa exclusivamente dos caminhos tortuosos, protelatórios e exaustivos que previnem a federalização dos crimes contra os direitos humanos, uma estratégia nacional de educação popular para o controle público das polícias. 

Sabemos que no pacto federativo e no 'jogo democrático' as funções de cada ente são bem definidas e que cabe aos governadores o controle sobre as polícias estaduais. Entendemos que mesmo a federalização dos crimes de direitos humanos depende da boa vontade – chamada no juridiquês de admissibilidade – dos 'homens bons', brancos, bem-nascidos, de toga preta. De fato, embora o Brasil seja signatário de tratados internacionais e tenha previsão legal no estatuto nacional, o instituto jurídico do deslocamento de competência, previsto pela Emenda Constitucional 45/2004, tem um histórico de desempenho risível. Quantos crimes já foram federalizados no país das chacinas?

Mais recentemente, a exceção na federalização das investigações (ainda que tardias) do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes confirma a regra que envergonha o país perante o mundo. Com uma média inacreditável de seis mil pessoas assassinadas pela polícia anualmente, o governo federal não possui um mecanismo emergencial de proteção e controle (quando acionada, a Força Nacional tem cumprido o papel de ajuda as policias estaduais, principalmente durante rebeliões nas prisões) mesmo em situações em que –evocando o título da carta desesperada de um sacerdote ruandês se antecipando ao genocídio Tutsi, em 1994, mas recebida com indiferença pelo presidente estadunidense de então – as vítimas vêm a público alertar que amanhã serão assassinadas. 


Como chegamos aqui? Em que 'espelho ficou perdida a face' de Antígona, presidente? Os governos que criaram o Bolsa Família, o Mais Médicos e o ProUni precisam fazer mais do que simplesmente lançar programas bem intencionados – a exemplo do Juventude Viva – sem combater o poder soberano de uma polícia que impõe a ordem racial. Enquanto isso, as mães negras envelhecem lutando contra a violência legal e legalizada que faz de seus filhos e filhas inimigas do Estado. O rótulo de bandido, no boletim de ocorrências, nas estâncias investigativas e nos tribunais, define a Justiça.


Talvez estejamos pessimistas por demais e devamos apenas esperar para ver, mas a verdade, presidente Lula, é que sendo Vossa Excelência vítima dos usos da lei para matar politicamente os opositores, se espera(va) um compromisso contra a vingança institucional organizada pela ditadura jurídico-policial contra os pobres. Afinal, a luta contra o lawfare não pode servir apenas à proteção de quem dedica a vida à nobre arte de travar o bom combate na arena representativa. O senhor sabe, a juventude negra, trans, pobres, favelada é assassinada por seu status político como pobre, negra, trans e favelada.


Os assassinatos de jovens com "passagens pela polícia" não podem ser aceitos como normais. Gritamos, não é normal que uma das maiores democracias do mundo conviva com uma polícia que organiza bandos para 'vingar' a morte de colegas de profissão. Polícia não é mafia nem seita secreta. Policiais são funcionários públicos. A periculosidade é, infelizmente, parte da sua função e, como agentes públicos policiais não podem utilizar a estrutura do Estado para interesses privados. Qual é o interesse público das operações-vingança? Vingança não é justiça e, qualquer acomodação discursiva que busque estabelecer equivalência falsa entre a morte de um servidor público e chacinas organizadas contra as comunidades pobres é imoral e cruel.

Essa crueldade normalizadora, que nos últimos quatro anos apareceu de maneira assustadora na personalidade doentia do ex-presidente capitão, se revelou de maneira sanitizada nas últimas semanas: um ministro condenou a morte do agente público, expressou confiança nas investigações estaduais, lamentou a morte de civis, repetiu a justificativa do 'confronto' e fez uma concessão: "possíveis abusos". Desautorize, presidente Lula! Autoridades constituídas não precisam de preâmbulo humanitário temerosamente calculados para estar 'bem' com a polícia. Que Brasília busque outras estratégias que não a falsa equivalência entre vidas negras e vidas policiais para conter o peso eleitoreiro da aliança fascista evangélico-militar que assombra o país. E que Brasília expresse, sempre, a solidariedade justa e necessária para com a família enlutada de trabalhadores da segurança pública, mas que também não se esqueça da mãe negra cuja relação com o Estado não é de servidora pública, mas sim cidadā. Como desabafa Debora Silva, "com nossos impostos, pagamos pela bala que mata nossos filhos".

Talvez, presidente, a maior dificuldade dos movimentos sociais e das vítimas do terrorismo de Estado não seja tão somente lutar contra as estruturas locais/estaduais que inviabilizam qualquer investigação independente, em uma espécie de federalismo policial antinegro, mas também lograr convencer "os do lado de cá" que a democracia é ameaçada com o terror diário que as populações empobrecidas, negras e enegrecidas sofrem nas mãos dos agentes de segurança pública em tempos de normalidade institucional. Se lográssemos um protagonismo progressista do governo da "união e reconstrução", todos os percalços institucionais e amarras legais seriam superadas em torno de uma mesa de concertação nacional com movimentos sociais, familiares de vítimas, Congresso Nacional e Justiça Federal contra o terror policial.

Nos custa muito escrever, mas a verdade é que o presidente Lula que emociona a todos nós em sua luta intransigente contra a fome, falhou miseravelmente, nos seus dois primeiros mandatos, em criar um mecanismo nacional de proteção contra a violência policial. Em dada semana de maio de 2006, quando centenas de pessoas foram assassinadas e PSDB e PT governavam respectivamente São Paulo e o Brasil, a ordem democrática seguiu seu rumo, tranquila e serena. Naquele maio sangrento de então não houve Oito de Janeiro; no agosto de 2023 tampouco. Nos quatorze anos dos governos do Partido dos Trabalhadores, o crescimento econômico e a inclusão social conviveram harmoniosamente com o terror policial. Particularmente o governo Lula, como nenhum outro na história deste país, garantiu direitos e, como todos os que o antecederam, negou a vida


Agora que a favela cumpriu mais uma vez seu compromisso com a história, salvando o país do bolsonarismo, resta saber se o operário nordestino, vítima da vingança institucional do lawfare, 'com passagem pela polícia' e eleito para um terceiro mandato, terá a coragem de proteger a democracia para além do direito de votar e ser votado. Que Zumbi dos Palmares lhe dê saúde e mais que boa vontade, querido presidente!

Respeitosamente,

*Jaime Amparo Alves, antropólogo e professor da Universidade da Califórnia, Santa Barbara

**Rosangela Martins, advogada e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo

 

4 de ago. de 2020

Biópolis, necrópolis, negrópolis: notas para um novo léxico político nos estudos sócio-espaciais sobre o racismo


Este artigo de reflexão propõe alguns conceitos para uma agenda de estudos urbanos comprometida com a justiça espacial em duas sociedades da diáspora africana. Tomando como referência os padrões de segregação racial em Salvador, Rio de Janeiro, Santiago de Cali e Bogotá, proponho um novo léxico político nos estudos sobre racismo e suas dimensões espaciais, com base nos conceitos de bipolis, necrópole e negrópolis (blackpolis). Argumento que o referencial teórico do “direito à cidade” é importante mas insuficiente para explicar a experiência única das gentes negras com a engenheria macaba que produz a cidade multicultural. Negrópolis é, então, apresentada como uma comunidade política alternativa, fundada em uma ética negra que ressignifica o que entendemos como humanidade, que reorganiza o mundo da produção e que reconfigura radicalmente a vida urbana dos condenados e condenados da cidade. Leia mais...

19 de mar. de 2016

O ocaso do petismo e as tarefas da esquerda brasileira: apontamentos para debate

José Carlos Freire[1]

Em uma ceia, prolongada noite adiante, perguntara alguém as horas ao suíço de serviço; ao que este, olhando para o relógio, e verificando que era passada a meia-noite, respondeu: “Já é amanhã, meus senhores”.

Essa anedota foi recolhida por Alberto Torres quando, no início do século XX, enfrentava a tarefa de pensar os limites da República Velha e consequentemente propunha os rumos para superar seus problemas fundamentais. Guardadas as devidas diferenças de contexto histórico e ressalvadas as posições ideológicas do autor, ela bem que poderia ser aplicada a uma reunião da esquerda no tempo presente da história brasileira.
A pauta da reunião da esquerda teria dois itens fundamentais: primeiro, o informe de que o intervalo do petismo dentro do bloco histórico hegemônico burguês acabou; segundo, os encaminhamentos daí decorrentes. É claro que na política, como na vida, nada é simples. O ocaso do petismo apresenta desafios urgentes, no qual se situa o debate sobre a intensificação da ofensiva de direita por meio dos órgãos de imprensa. Ainda assim, penso ser o momento de muita frieza e cautela no debate porque se é grande o desafio imediato da conjuntura, maiores serão os desafios colocados à esquerda nos próximos anos: reconstruir um projeto popular para o Brasil distante do petismo.
As modestas reflexões aqui colocadas são tentativas de contribuir para o debate, limitadas e certamente cheias de lacunas[2]. O urgente parece ser distinguir as táticas imediatas de combate a esta espécie de “midiocracia” burguesa que vivenciamos da ação estratégica de construção de um projeto popular para o Brasil, participativo e democrático, que resgate o referencial do socialismo sequestrado pelo petismo e confinado aos limites da burocracia estatal, ao pragmatismo político e à manutenção do poder.


  1. Tentando compreender o ocaso do petismo

Enquanto vejo o noticiário para saber quais as novidades de show da realidade que virou a política brasileira, sigo escutando o tilintar das enxadas das trabalhadoras que limpam as ruas de pedra do bairro. Trabalho ingrato e duro, sem as mínimas condições de proteção do sol e do calor, sem a mínima assistência do poder público que as lança às ruas como as mineradoras lançam os mineiros às montanhas, contando simplesmente com a boa vontade dos moradores em ceder-lhes um copo d’água ou o banheiro para uso, elas seguem, duramente existindo, bravamente resistindo.
A situação destas trabalhadoras se assemelha à daqueles em estado de semiescravidão das lavouras de cana, dos que oscilam entre o desemprego fruto da implementação tecnológica do agronegócio e o subemprego nas panhas de café, retiro de leite e colheita de frutas, dos que se matam por um salário miserável nas capitais do Brasil. As condições desses trabalhadores reais, como estas que a minha porta enxugam o suor no escaldante sol de Teófilo Otoni, substancialmente, não se alteraram no intervalo que foi os Governos do PT. O que não implica em dizer que benefícios sociais não foram realizados. O determinante é que estruturalmente o Brasil não se alterou. Daí a dificuldade de se criticar o petismo que se mostrou tão aguda nos momentos de eleição em 2006, 2010 e 2014. Mudou ou não mudou? O pensamento binário – do qual também servem de exemplo “PT ou PSDB?”, “Dilma ou Aécio?”, “Lula ou FHC?” e tantos outros a que a mídia nos leva a pensar e que o petismo ajudou a alimentar – não nos ajuda. O Brasil mudou e não mudou. E nessa amálgama de mudança e permanência, alma da história, considerando que em nenhum momento a hegemonia burguesa foi ameaçada, o pouco que mudou não alterou o predominante que não se alterou. A sutil diferença dos governos Lula e o primeiro mandato de Dilma em relação aos governos anteriores do período pós-redemocratização não alterou o essencial: continuamos um país subdesenvolvido, com uma gritante segregação social, dependência econômica crescente, não apenas com pouca industrialização, mas com desindustrialização e uma democracia de fachada que transforma o popular em plateia e o parlamentar em palco.
Nesse registro interpretativo, não só porque não conseguiria fazer uma análise consistente do ocaso do petismo, mas porque penso que os elementos essenciais já foram colocados no debate, destacado quatro abordagens: Fernando Silva, em seu texto “Precisamos construir outro projeto de país, longe dos governistas”[3]; Fábio Nassif, com “É possível combater a direita e dizer adeus ao lulismo”[4]; Mauro Iasi, com “A crise do PT: o ponto de chegada da metamorfose”[5]; e Valério Arcary, no texto de 2015 “É possível reconstruir uma esquerda revolucionária depois da ruína do PT ou esta soterrará toda a esquerda?”[6]. Passo a alinhavar livremente alguns pontos presentes nestas análises que me parecem convergentes, substancialmente, e podem nos dar pistas para entender o processo para além da avalanche de elementos que a conjuntura diariamente nos impõe:

·      A responsabilidade primeira por termos chegado aonde estamos cabe aos governos petistas. O modelo de desenvolvimento (neo-desenvolvimento, social-desenvolvimento, enfim, palavras tantas usadas para ocultar a essência que é mesma), calcado, na agroexportação extrativista, com tímida distribuição de renda sem mexer nos lucros do capital financeiro representa uma forma de conciliação de classes, expressa no lulismo. Mais que isso, a opção de conciliação com a burguesia nefasta que temos no Brasil implica, necessariamente, em traição de classe. Num contexto específico de ampliação de mercado na periferia, grande quantidade de capital disponível, numa margem grande de manobras, Lula foi aceito pelo capitalismo global. De sua parte, ele agradeceu o acolhimento, aplicou as medidas necessárias – já previstas na Carta ao Povo Brasileiro de 2002 – e convenceu as massas de que estas regras do jogo eram administráveis. O efeito colateral trágico foi a despolitização das classes populares. Ao desarmar os movimentos sociais de sua autonomia necessária, ao congelar a reforma agrária com o agronegócio, ao responder ao extermínio de jovens e negros da periferia e ao tratamento das posições de esquerda como fatos policiais pela Lei Antiterrorismo, entre tantas outras ações ao longo destes 13 anos, o PT desorganizou as classes trabalhadoras e deslocou o campo da luta para o Estado, onde a burguesia tem o mando de campo, é dona do uniforme, da bola, contrata o juiz e ainda cobra ingresso.
·      O momento atual do PT não é fruto do acaso, e sim decorrência do caminho que o partido escolheu. Da articulação entre conquista de espaço no poder, de um lado, e a construção de um movimento de massas de outro, modelo que está na origem do Partido dos Trabalhadores, caminhou-se paulatinamente para a ênfase na disputa pelo poder para que depois se buscasse avançar rumo ao socialismo. Um programa antilatifundiário, anti-imperialista e antimonopolista exigiu, gradativamente, do partido a acomodação de táticas cada vez mais flexíveis para se chegar ao governo. Quando lá se chegou, a antiga articulação entre busca do poder e avanço da organização de massas cedeu lugar à estrita manutenção do poder, reduzida a alianças parlamentares e performances eleitorais. Ampliar alianças, vencer eleições e garantir a governabilidade. Do ponto de vista de um “partido”, tecnicamente correto; do ponto de vista “dos trabalhadores”, cooptação.
·      A direita não precisa mais de intermediários, prefere governar diretamente. Ao tentar se livrar de Lula, a burguesia se orienta pela estabilidade. Não que Lula represente um projeto socialista de enfrentamento, o que colocaria o cenário eleitoral de 2018 como incerto. Mas porque, dadas as necessidades de aprofundamento da ofensiva neoliberal, não cabe absolutamente nenhuma concessão às classes populares, nem mesmo aquelas que o modelo de conciliação em um momento anterior tornou possível. A margem de manobra que a conjuntura de 2003 e seguintes permitiu não existe mais. É para retomar o governo de forma direta e empreender avanços no modelo neoliberal que todo o circo se arma, não porque Lula ou PT represente a esquerda ou o socialismo.
·      A defesa do governo Dilma e de Lula pela esquerda representa uma armadilha. Não obstante o jogo ilícito jurídico-midiático armado, não cabe à esquerda efetivamente comprometida com a transformação social fazer coro às manifestações de apoio ao governo que misturam, de modo deliberado, denúncia ao modo como a ofensiva da direita se apresenta com uma necessidade de defesa de Lula e Dilma. São coisas distintas. Ademais, a defesa incondicional do governo e de Lula, como apresentam os setores petistas e que seduz enorme parcela dos setores da esquerda, implica quase que de modo fatal o silêncio sobre a corrupção, sobre o enriquecimento de lideranças populares, sobre o modo com se rasgou a ética o espírito republicano, reduzindo-se tudo à tese do golpismo.
·      Defender o lulismo implica em aceitar as condições da hegemonia burguesa. O resgate do lulismo, na forma messiânica que os setores mais à direita do PT propõem, é o mesmo que defender as pazes com a burguesia corrupta brasileira, que não tem projeto nacional de sociedade que possa realizar mudanças civilizatórias profundas, muito menos em aliança com a classe trabalhadora. Acreditar que esta burguesia possa defender bandeiras anti-imperialistas, antimonopolistas e antilatifundiárias representa uma ingenuidade que a esquerda brasileira já deveria, no seu conjunto, ter superado há muito tempo. No limite, retomar a conciliação de classe, o lulismo, ainda que hipoteticamente possível, implica em aceitar as regras atuais do jogo, que são piores que as de 2003: avançar sobre os trabalhadores nos seus direitos mais elementares. O preço da governabilidade, no contexto de hoje, não é a flexibilização ou mistificação de um programa democrático popular e sim a sua renúncia radical e irrestrita.
·      É necessário defender de modo crítico o Estado democrático de direito e denunciar o papel da mídia. Não podemos nos calar diante dos métodos judiciais aplicados nos últimos dias que, além de questionáveis e fundados em interpretações mais políticas que jurídicas, coloca uma linha direta entre Polícia Federal e grande mídia, especialmente a Rede Globo. Vivemos uma espetacularização do político que combina o princípio do “pão e circo” dos seculares modelos de dominação com os sofisticados instrumentos seletivos de informação. Ocorre que a mídia burguesa e a elite brasileira sempre foram reacionárias, o que não significa que devamos isentar de responsabilidade quem se aliou a elas. O PT propagou a ilusão de que poderia tê-las como aliadas, negociou com elas e governou para elas. A defesa do Estado democrático deve se basear na garantia da legalidade, para que o que fazem hoje com Lula e o PT não se torne um elemento da cultura política e, portanto, apresente-se como naturalizado.
·      É preciso muita cautela com a tese do golpe. O modo apressado com que os governistas interpretam o momento como golpe, associando-o sem mediação alguma com o contexto de 1964 é perigoso. Potencializada pelas redes sociais, a tese do golpe ganha espaço crescente. Ainda que evidente a manipulação de interesses e informações, não temos, ainda, um processo que coloque partidos na ilegalidade, feche sindicados e movimentos sociais, proíba a liberdade de expressão, exile políticos etc.
·      Nem Lula pode salvar o projeto petista de poder. Há uma articulação direta entre o agravamento da crise social e econômica que atinge os trabalhadores, por um lado, e a insatisfação de setores da classe dominante – parte do mercado financeiro e a grande mídia corporativa, por outro. O que nos impede de pensar o “efeito Lula” como solução mágica. Nem com toda alquimia política, Lula poderia, neste contexto, que difere radicalmente de seu primeiro mandato, articular interesses díspares como são a necessidade do grande capital e as das classes populares. Não há mais margem de manobra. Não deve ser subestimada a capacidade política de Lula e talvez até venha a reerguer seu projeto de voltar ao poder, na cadeira presidencial. Mas será outro momento, outro Lula e não a pura reedição de 2003.
·      Enquanto a direita se articula com facilidade a esquerda é heterogênea.  Mesmo que possamos formular de modo variado a configuração da esquerda – quer dividida entre reformistas, centristas e revolucionários, quer, numa outra forma, dividida entre moderados e radicais, o fato é que em conjunturas distintas a esquerda tem comportamento diferenciado no seu interior. Simplificando ainda mais, no nosso caso, poderíamos falar de uma esquerda que se opõe ao petismo e uma que ainda aposta nele. Como nas conjunturas das últimas eleições presidenciais, quando se descortinou a ameaça efetiva do retorno de um governo de direita (ressalvando-se que, nesta leitura, o PT seria de esquerda), no presente, a tendência é de uma hegemonia, no campo da esquerda, do reformismo. Enquanto a esperança seria de que setores e agentes progressistas desembarcassem do governo para fortalecer uma plataforma de esquerda mais combativa, o que ocorre é que muitos setores titubeantes que ensaiavam uma ruptura acabam por reembarcar no trem do governo. Numa palavra: a esquerda de oposição ao governo precisa de muito trabalho, debate, paciência, articulação e organização para se mover no terreno argiloso que reduz todo jogo a uma disputa entre os do bem (pró-governo) contra os do mal (antigoverno).

Evidentemente a situação exige uma análise muito maior. No entanto, os elementos acima parecem suficientes para pensarmos os desafios que se colocam para a esquerda brasileira atual, tomada, nestas breves reflexões, como o conjunto das forças sociais que, situadas na defesa das classes trabalhadoras, colocam-se contrárias tanto ao governo quanto à ofensiva da direita, rompendo o dualismo nefasto em que fomos lançados.


2.     Tarefas urgentes para a esquerda

Passo a elencar algumas tarefas que me parecem imprescindíveis. Longe de qualquer pretensão de receituário ou coisa do tipo, nada mais são do que tarefas permanentes da esquerda que, em alguns contextos, se apresentam de modo mais urgente, como é o caso brasileiro atual.


a)     Esforçar-se por distinguir as coisas de modo crítico

“Buscar a real identidade na aparente diferença e contradição, e procurar a substancial diversidade sob a aparente identidade é a mais delicada, incompreendida e, contudo essencial virtude do crítico das ideias e do historiador do desenvolvimento histórico”
 (Antonio Gramsci)


Na avalanche de coisas que a conjuntura nos lança a cada dia, a cada hora quase, torna-se difícil compreender quem é quem e que jogo é jogado. Esta dificuldade é tanto maior quanto for o isolamento do militante de esquerda. Aponto apenas três elementos que me parecem urgentes para fomentar o debate. Claro que há muitos outros. Primeiramente, parece-me fundamental superar a aparente associação que é feita entre oposição ao governo do PT e negação das conquistas realizadas desde 2002 no plano social. Ser contrário ao governo não é o mesmo que negar o avanço representado pela inclusão de jovens pobres e de negros na Universidade, a expansão do ensino superior público, o debate e ações em torno da diversidade afetivo-sexual, o enfrentamento da violência contra a mulher, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, ainda que insuficientes. Estas conquistas, inclusive, não podem ser atribuídas exclusivamente ao governo, mas também à luta histórica de movimentos diversos que por elas batalharam. A saída para esta confusão de ideias parece estar em compreender que a correlação de forças, políticas e econômicas, nacionais e internacionais, permitiu este avanço em um momento, agora não permite mais, mesmo com toda a retórica de luta empreendida por Lula. E não se trata de um agora imediato: a inflexão já se acentua desde o primeiro mandato de Dilma.
Um segundo ponto é a insistência quase religiosa dos setores governistas em opor o programa do PT ao do PSDB como extremos. Ressalvadas as origens dos dois partidos e sua composição, programaticamente situam-se na defesa da mesma ordem burguesa. Deste imbróglio, resultam as propostas capitaneadas, mas não monopolizadas, por atores como a CUT e a UNE: apoio ao governo e cobrança por mudança no modelo econômico para favorecer os trabalhadores, como se fossem ações convergentes e não opostas. O caso do MST é a dor mais doída, não apenas por sua demora em romper com o lulismo que se prolonga demais, mas porque guarda em suas bases uma experiência de formação e organização e um potencial de lutas enormes. A saída dessa confusão parece ser a necessidade de se colocar em primeiro plano o posicionamento de classe e não o posicionamento de poder, da qual decorrerá a constatação de que, substancialmente, PT e PSDB não se diferem mais.
Em terceiro, tomado aqui de modo muito genérico, refiro-me ao conceito de bloco histórico, entendido como o modo pelo qual economia, política e ideologia se articulam no interior de uma sociedade em um período histórico determinado. Corremos o risco, numa leitura apressada, de afirmar que achegada de Lula à presidência inaugurou um novo bloco histórico, este mesmo que a elite brasileira e seus órgãos de imprensa estariam propondo agora o fechamento por meio de um golpe. No entanto, se atentarmos para o fato de que, para chegar ao poder, o PT teve, como nos mostra detalhadamente Mauro Iasi em seus estudos, de negociar seu programa e abrir mão de seu caráter socialista, concluiremos que o breve intervalo petista não alterou o capítulo burguês pós-64. Em outros termos, o bloco histórico pós-golpe militar consolidou, dito aqui sem maiores aprofundamentos, um tipo de capitalismo dependente no Brasil que mesmo a redemocratização e a ascensão do PT ao poder não conseguiram alterar. Aliás, Lula foi um agente, naquele momento, necessário exatamente para combinar desigualdade social interna administrada por benefícios sociais e aumento do crédito – estas mesmas medidas que ele cobra hoje do Governo Dilma – com alta lucratividade do grande capital nacional e, principalmente, internacional.
Ocorre que dentro de um bloco histórico, pode haver pequenos intervalos que não invalidam a lógica dominante. Quando um intervalo termina (“já é amanhã, meus senhores”), não significa que há um novo bloco, apenas a continuidade do que já estava afirmado.  A suposta ruptura que o PT teria representado na sociedade brasileira – propagandeada pelo ideário do novo-desenvolvimentismo e conceitos similares – nada mais foi que uma variação no modo e na intensidade como a burguesia brasileira administra o país desde 1964, ali sim, o início de um bloco histórico que não está nem de longe ameaçado de ruir. Só ruirá quando houver real enfrentamento da dominação burguesa pela organização popular e discussão efetiva de nossos problemas estruturais. Fora isso, se é Lula, se é Dilma, se é Temer ou se é Aécio, trata-se apenas de escalação diferente para o mesmo time. Lula, outrora atacante e artilheiro, caiu para zagueiro, gandula e, por fim, é convidado a se retirar do campo e do estádio. O jogo continuará. Agora, é melhor sem ele. Mas o mercado da bola transforma vilões em heróis. Nas curvas nebulosas da política brasileira, poderá ele ser ainda contratado? Desconfio que não. Ele parece apostar que sim. De qualquer modo, ironicamente, os torcedores deste grande espetáculo futebolístico vestem a camisa da ilibada e altamente respeitada CBF. O povo brasileiro, bem, este permanecerá de fora, recolhendo latas amassadas.

b)    Conservar a experiência original do PT de base e superar o mito Lula

Aufheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Aufheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria”  
(Eduardo Galeano)

A superação de Lula como mito messiânico que resolverá todos os problemas precisa ser enfrentada com coragem e seriedade pela esquerda. Mito se supera com leitura histórica concreta. Ainda que se safe no tribunal da Lava Jato, naquele que é mais importante para nós, o tribunal da luta concreta dos trabalhadores, neste, Lula perdeu em todas as instâncias, ainda que tenha entrado com muitos recursos que precisem ser analisados. Será o processo difícil de superação de um mito. Mas nem mesmo mil discursos inflamados de Lula podem abalar a convicção daqueles que com seriedade, sem demagogia e sem pragmatismo político empreendem uma busca efetiva por transformação social no Brasil. Ouvir Lula, é certo, é sempre um risco. Alquimista da política, ele enfeitiça.
No entanto, Lula não esgota tudo o que foi o PT. Nesse sentido, a experiência original de base do partido é algo que precisamos revisitar, de modo crítico. Ainda que se considere que desde o início a cúpula sindical sempre se pautou pelo modelo de conciliação, verdade é que nas comunidades, nos núcleos de base a experiência do partido como construção popular foi rica e representa um dos momentos mais significativos da nossa história. E isto não se deu apenas nas regiões industriais, entre a parcela proletarizada dos trabalhadores brasileiros. Deu-se também em iniciativas pelo interior do Brasil de luta pela terra, organização de sindicatos rurais, entidades de formação de quadro que ainda hoje resistem apesar da cúpula do PT. O partido abarcou forçar sociais variadas, movimentos, grupos de igreja etc. Antes de se tornar um partido “do capital”, em situações reais, não apenas no discurso do Lula, ele foi “dos trabalhadores”. Esta experiência deve ser conservada e recriada sob novos referenciais.

c)     Formação política, vinculação a coletivos de luta e aposta na juventude

“É preciso reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro é problemático e não inexorável”.
(Paulo Freire)

A militância de esquerda sempre exigiu um esforço sobre-humano: além das lutas, além do trabalho, além da sobrevivência, ainda é preciso estudar, formar-se. O momento exige, de modo especial, capacidade de entendermos de onde viemos e como chegamos a este ponto. Sem isso, dificilmente traçaremos propostas factíveis de futuro.
Os tempos que se avizinham não serão fáceis, exigirão de nós muita convicção pessoal e o necessário engajamento em coletivos de luta ou fortalecimento daqueles que já o fizeram. Dos mais variados, não pesa tanto agora qual partido ou movimento, desde que se pautem por um caminho de ruptura – ainda que leve muito tempo – e não de conciliação. Também teremos de nos adaptar, no conjunto da esquerda, com o que passou aquela sua parcela que se manteve ao longo desses anos em oposição ao governo: sem financiamento, sem auxílio do governo, sem ônibus ou passagem para viagens, sem a mínima estrutura para organização de eventos. Voltaremos a condições gerais de luta muito difíceis. Na provável quadra história de direita, não só no Brasil, mas na América Latina, teremos de nos fortalecer teoricamente e com ações práticas dentro das possibilidades e determinações de cada movimento, região ou situação.
O que não podemos, neste contexto, é confundir dificuldade com impossibilidade. O que deve mover um militante de esquerda nos tempos que se iniciam é a convicção expressa por Vandré em uma de suas canções: “Eu canto o canto, eu brigo a briga, porque sou forte e tenho razão”. Força e razão que serão maiores na medida em que conseguirmos romper o isolamento e a dificuldade de diálogo no interior da esquerda, por vezes, tão presa a discussões escolásticas e definições linguísticas.
Por mais longa que possa ser a caminhada, ela exige convicção dos mais experientes e aposta nos mais jovens. Os espaços precisam ser criados ou fortalecidos. O que não pode faltar é esperança. A esperança crítica de que falava Paulo Freire. Que não implica em um imobilismo acomodado, mas na imersão radical em um processo mesmo sabendo que os resultados podem não ser imediatos. Nas palavras de Pedro Casaldáliga, “saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar”.


d)    De imediato: e agora?

Pode ser que ainda não seja a hora de uma nova esquerda socialista de
 massas, mas nunca será se ficarmos aprisionados nas velhas âncoras
que podem nos levar juntos ao fundo mar”.
(Fábio Nassif)

Estas breves ponderações não resolvem a questão central que nos inquieta: o que fazer nos dias que correm com ações cada vez mais ofensivas da direita para tirar o PT de cena, com um braço jurídico e outro midiático, a velha combinação de força e consenso que Maquiavel já nos havia ensinado há tempos. É claro que, em contraponto aos protestos contra Dilma e contra o reingresso formal de Lula no governo, haverá manifestações nos próximos dias pelo país de apoio. A história não permite que tenhamos a compreensão total das coisas, para só depois nos posicionarmos. Ela vai acontecendo, sem nos esperar.
É muito difícil que em uma manifestação contra a mídia e as ações arbitrárias da Polícia Federal, resumidas na ideia do “contra o golpe”, não haja uma decorrência espontânea para o apoio ao governo e, diretamente, a Lula. Será possível pautar estas reais ameaças ao Estado de Direito e ao mesmo tempo colocar-se contra o governo que empreende um acirramento da ofensiva neoliberal?  É algo que as bases organizadas de cada manifestação devem debater. Seria descabido apontar uma resposta válida para todos os casos.
As duas propostas ventilidadas em setores mais combativos da esquerda, o “Fora todos!” e “Eleições gerais já!, em tese são coerentes com o que o momento pede, mas esbarram na falta de organização popular que as respalde. O cenário, embora mude toda hora, parece apontar para a opção da direita pelo impedimento de Dilma, o que coloca o poder nas mãos do PMDB e, certamente, freará a força das investigações. Tirando o PT, dificilmente a Lava Jato manterá seu vigor. O bloco histórico se acomoda e voltamos à normalidade. Isso indica que a ideia de novas eleições vai esbarrar não só na falta de organização da base mas também na resistência da direita.
 Sem bola de cristal, sem passe de mágica, resta-nos a paciência e o diálogo como forma de reagir à intolerância, o encontro face a face com companheiros de luta para resistir ao isolamento e a construção coletiva como forma de traçar caminhos coerentes com um projeto popular, democrático e socialista. Não será fácil. O que não significa que é impossível.




[1] Professor na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Campus de Teófilo Otoni/MG. Email: freire.jose@hotmail.com
[2] O texto se distancia de qualquer proposta de análise especializada sobre a política ou a conjuntura. É muito mais uma tentativa de debater sobre o momento presente em continuidade com os muitos diálogos com companheiros e alunos, em especial, da disciplina de Ciência Política no atual semestre.
[3] SILVA, Fernando. “Precisamos construir outro projeto de país, longe dos governistas”. Correio da Cidadania. 11/03/2016. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11491:2016-03-12-00-01-09&catid=72:imagens-rolantes
[4] NASSIF, Fábio. “É possível combater a direita e dizer adeus ao lulismo”. Correio da Cidadania. 05/03/2016. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11477:2016-03-05-14-39-19&catid=72:imagens-rolantes
[5] IASI, Mauro. “A crise do PT: o ponto de chegada da metamorfose”. Blog da Boitempo. 10/03/2016. Disponível em: http://blogdaboitempo.com.br/2016/03/10/a-crise-do-pt-o-ponto-de-chegada-da-metamorfose/
[6] ARCARY, Valério. “É possível reconstruir uma esquerda revolucionária depois da ruína do PT ou esta soterrará toda a esquerda?”. Correio da Cidadania. 05/10/2015. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11138:2015-10-06-00-07-31&catid=25:politica&Itemid=47