Por Lélia Gonzalez
Fonte: http://www.irohin.org.br
Negra baiana, baixinha, ágil, cheia de graça. Bonita de uma beleza que se espraiava pelo corpo forte e bem feito (enxuto, melhor dizendo), pelo sorriso gostoso e matreiro, pelo olhar agudo e luminoso. Inteligência, sensibilidade e competência profissional, enriquecidas no tempero de uma exuberante alegria de viver. Conheci Tininha há alguns anos atrás em casa de um amigo, onde ela trabalhava como diarista.
Categorias ocidentais como empregada doméstica, criada, auxiliar ou qualquer coisa do gênero, criadas pelas classes dominantes, não tinham nada a ver com ela concretamente. Afinal, ela sempre escolhia o tipo de “patronagem” que queria ter, acabando por comandar as ações nas casas onde trabalhava, e mesmo fora delas. Não me esqueço do dia em que entrei numa butique em Ipanema, e lá estava Tininha, com tudo em cima, gerenciando os negócios da patroa. Lembrei-me, então, de suas ancestrais iorubas. Talvez porque ela nunca se iludiu a respeito de sua condição de mulher negra numa sociedade como a nossa.
Nascida e criada em Salvador, onde se casou, o marido a abandonou, deixando-a com quatro filhos. Em busca de um futuro melhor, Tininha veio para o Rio com suas crianças. E foi à luta. Trabalho duro, dupla jornada. Conheceu um novo amor, que durou um bom tempo e lhe deu mais três filhos. Sempre que podia, ela voltava à cidade natal para rever a mãe que lá ficara. Isto, graças ao fato das crianças irem crescendo e trabalharem para ajudar em casa.
Assim, no final de março deste ano, Tininha partiu para Salvador, deixando o filho mais velho, Jorge, com a tarefa de cuidar dos irmãos menores. Mal chegou ao Curuzu. Um telefonema e uma passagem aérea (dada pela patroa que a chamara) obrigaram-na a voltar. Duas noites após a partida de Tininha, alguns homens bateram à porta de sua casa em Nilópolis, Baixada Fluminense. Não era tarde, mas Jorge, que passara o dia carregando/descarregando caixas da Brahma, já estava deitado. Levantou-se, abriu a janela e, desculpando-se por não abrir a porta pelo fato de não os conhecer, perguntou-lhes o que queriam. A resposta foram dois tiros à queima-roupa. Eram policiais. Mas por que Jorge, trabalhador sério, com carteira assinada e tão querido por todos do lugar?
Jorge havia cometido um erro fatal. Tirara uma foto ao lado de alguém procurado pela polícia, após um jogo de futebol, num angu comemorativo da vitória do time local. Na busca do “bandido”, os policiais, depois de invadirem e quebrarem o que puderam em sua casa, forçaram sua mãe a lhes dar uma foto do filho. E ela só tinha uma, a do campo de futebol. E Jorge, trabalhador negro, arrimo de família, filho e irmão dedicado, não soube porque foi assassinado. A imprensa silenciou sobre esse “acidente de trabalho”.
Em junho, num encontro do Movimento Negro da Baixada Fluminense, justamente a respeito da violência policial, foram apresentados os seguintes dados a respeito dos corpos de “justiçados” que deram entrada no Instituto Médico Legal de Nova Iguaçu, no período entre 01/01 a 31/01: 305 brancos, 635 negros e 170 não identificados. E todos sabem que uma verdadeira guerra de extermínio instaurou-se de 15 de março para cá e da qual nem nossas crianças negras escapam. Quatro delas feridas no morro da Mangueira e, para culminar, o assassinato brutal, com um tiro na testa, de Estela Márcia dos Santos, 13 anos, no morro do Tuiuti. “É a polícia do Moreira”, diz o povão.
Quanto a Tininha, mandou os filhos para Salvador. Enquanto isso, desenvolve verdadeira peregrinação junto ao Inamps, para conseguir a magra pensão de Jorge, a que ela e os filhos menores têm direito. Profundamente revoltada, ela insiste e não desiste. Só depois, então, retornará a Salvador, ao encontro da “Negrice cristal/Liberdade-Curuzu”.
Fonte: Jornal Raça & Classe, Brasília, ano 1(2):8,1987.
Reproduzido do irohin em: http://www.irohin.org.br
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