30 de nov. de 2015

Globo, Belíndia e Belgiquistão: a arte de mascarar a sub-cidadania

Por Laura Lima*

Um dos maiores orgulhos que tenho é ter deixado de assistir a Rede Globo ainda na adolescência. Nos quase vinte anos que se passaram desde então, tive apenas uma reincidência: o discurso de posse de Lula em 2003. Na última segunda-feira quebrei esse jejum para ver (online) a reportagem sobre Molenbeek que foi ao ar no Fantástico do último domingo. Vivo na Europa há cerca de 10 anos, seis do quais na capital belga. Me senti na obrigação de ver o que a Globo tinha a dizer sobre um dos bairros que mais conheço na cidade. Foi quase um exercício de auto-flagelação: um sofrimento desnecessário, masoquismo ao raiar do dia.

Entre tantas coisas, a globo colocou Molenbeek como ninho do terror e finalizou a reportagem falando em “Belgiquistão”. Imediatamente, isso me trouxe a lembrança uma moda nas rodas intelectuais dos anos 90/2000 sobre o Brasil. Falávamos de Belíndia. No fundo, o intuito do termo era realçar que, no Brasil, haviam duas realidades que conviviam lado-a-lado. Uma delas, diminuta, apresentava os mesmos indicadores de desenvolvimento humano que a Bélgica. Enquanto que havia entre nós também indicadores iguais aos da Índia. Apesar de tentar descrever a gritante desigualdade brasileira, o termo em si é impregnado de uma armadilha política.

É que Belíndia nos diz muito o que nós, brasileiros, pensávamos sobre a Bélgica e sobre a Índia. Pressupõe-se que a Bélgica e a Índia são, nessa ordem, os bastiões do desenvolvimento e do subdesenvolvimento humano, quando na verdade sabemos que em qualquer país há privilegiados e excluídos. Basta ver os 7.5 milhões de anafabetos funcionais na força de trabalho alemã, os 22% de criancas vivendo abaixo da linha da pobreza no Estados Unidos, o 1% da população indiana que detém 53% da riqueza nacional, ou os 10% dos paquistaneses que juntos detém 27% do PIB nacional. Embora esteriótipos reforcem nossa visão de países como um todo homogêneo, não há nada sobre a vida e a morte em qualquer um deles que nos dê qualquer pista de uniformidade.

Da mesma forma, chamar Molenbeek de Belgiquistão é uma preguiça acadêmica e, principalmente, uma maldade política. Maldade política em dois atos. Primeiro, porque, como a última semana mostrou, nem tudo é flores no Reino da Bélgica e nem tudo é morte da República Islâmica do Paquistão. Segundo, é também uma maldade política porque invisibiliza os processos de exclusão que permitem que, em qualquer país, pessoas sejam relegadas a uma vida precária. A sede, a fome, a falta de moradia, de escolas, de hospitais e, acima de tudo, de dignidade humana, são fenômenos políticos e históricos, que devem ser desvendados, explicados e combatidos independentemente de onde eles ocorram. Chamar Molenbeek de Belgiquistão é simplesmente negligenciar os quase 100 mil moradores do bairro que não só não compactuam com a violência armada mas que também contribuem enormemente para Bruxelas ser a segunda cidade mais cosmopolita do mundo. Chamar Molenbeek de Belgiquistao é estigmatizar ainda mais uma parcela da população que já vive de ser o bode expiatório de todas a políticas anti-imigração.

O ninho de terror do qual falou a globo oferece escolas públicas para todas as suas crianças (meus afilhados estudam lá e os pais – brancos, classe média, e flamengos – são muito contentes com o ensino), plano de saúde de qualidade e vários tipos de ação social que coloca até mesmo outros países da União Européia no pé do chinelo. Mesmo com tudo de bom que esse país tem a oferecer (e não são poucas coisas), a Bélgica também tem seus problemas. E o problema atual de Molenbeek está muito conectado às políticas de imigração adotadas pela Bélgica nos anos 60 e 70.

Os contingentes migratórios que chegaram a Bélgica desde a década de 1960, eram em grande parte comunidades norte-africanas (geralmente francófonas) ou de países árabes. Vieram aos milhares. E, enquanto ocuparam a vaga de mão de obra barata, ninguém reclamava. Não houve, por parte do governo ou dos cidadãos, uma política ampla de educação e integração social, econômica e/ou política. As segundas e terceiras gerações, nascidas e criadas na Bélgica, muitas sem ter nunca visto seu país de ‘origem’, nunca foram (e ainda não são) tratados como belgas. São sub-cidadãos. Suas religiões e suas culturas sempre foram muito mais toleradas do que celebradas. Desde que ficasse cada um no seu quadrado, estava tudo bem. E foi assim que Molenbeek foi se transformando no que é hoje: uma área de belgas não-belgas, onde a polícia não vai, em quem a cidade (e o país) investe muito menos, e o estado está presente muito mais timidamente do que em outros bairros. Essa vaga de cidadania e falta de identidade com o país onde nasceram, abriu a oportunidade para que o fundamentalismo religioso conseguisse arregimentar jovens para o terrorismo.

Se a reportagem do fantástico tivesse se esforçado um pouquinho mais para conhecer a realidade do bairro, saberia que o que o caracteriza é muito mais o número de pessoas que ali vivem em situação precária do que a religião ou a língua que falam. O desemprego em Molenbeek é em torno de 30%, e entre os jovens esse número chega a quase 40%. A taxa de desemprego entre as mulheres é 10% mais elevada naquele bairro do que a média da região de Bruxelas. Somente na última década, a população de Molenbeek cresceu em 24.5% – em um bairro que já é conhecido por ser super-populoso.

A situação só tem piorado desde que a Bélgica vem se rendendo aos devaneios do neoliberalismo. E é contra os sub-cidadãos belgas que se viram as políticas econômicas, financeiras e de imigração nesse país. A cada golpe contra o Estado de Bem-Estar Social, o sofrimento é sentido diretamente na parcela dos sub-cidadãos. O desemprego é apenas um deles. A direita belga não quer acabar com a escola publica, a saúde pública ou a segurança social. Mas quer esses sistemas fora do alcance dos estrangeiros (ou não-brancos, como preferir). E deliberadamente escolhe investir menos nas escolas que ficam em comunas como a de Molenbeek – onde as pessoas ganham menos e precisam mais dos insumos que uma boa educação pode produzir.

A Bélgica que tenho orgulho, aquela do Bem-estar social, o país que é 95% sindicalizado, e a educação é ampla e gratuita, escolheu nas, últimas décadas, não investir em Molenbeek. As escolhas neoliberais que o país tem tomado nas últimas décadas precarizam mais ainda a vida de milhares de cidadãos (que nunca foram reconhecidos como tal). Junte-se a isso todos os problemas, muito conhecidos por nós, fomentados em um ambiente de pobreza, desemprego, investimento mínimo em saúde e educação.

Há muitos problemas em Molenbeek. Mas o maior deles não é, nem de longe, o terrorismo. O terrorismo é uma consequência de décadas de escolhas politicas e econômicas que distinguem entre os belgas brancos e os contingentes de imigração. Chamar Molenbeek de Belgiquistao é ignorar as décadas em que a população do bairro não teve acesso as políticas sociais disponíveis em outras áreas do país. Chamar Molenbeek de Belgiquistao é esquecer que há um sistema de exclusão internacional que é ordenado e oficializado dentro de fronteiras nacionais, seja na Europa ou em qualquer outro continente. A reportagem do domingo passado na Globo só conseguiu provar o que tantos de nós sabemos sobre a emissora no panorama nacional: sua visão e parcial, míope que age contra o bem comum.

 * Laura Lima é doutora em ciência política e representante das Nações Unidas para assuntos urbanos – Programa Cities Alliance

25 de set. de 2015

“Una requisa, negro”! sobre amnesia, privilegios y verdad racial en tiempos de cólera


Por Jaime Amparo Alves[1]

“Ser negro y consciente es estar en un estado de cólera permanente”
(James Baldwin)


El desahogo de CarlosAlberto Angulo Góngora, un hombre negro de 33 años, frente a patrulleros de la Policía Nacional que lo intentaban requisar en el centro de Bogotá, ha causado un gran debate en los medios de comunicación y medios sociales de Colombia. La sorpresa y alboroto en las redes sociales revela otro escándalo: el  privilegio racial de una sociedad civil indiferente a la condición infra-humana/sub-ciudadana de las gentes negras del país. Es como que de repente se descubrió que hay racismo en Colombia.  Y lo descubrió porque dos agentes de la policía hicieron en público lo que la sociedad hace diariamente con lo que uno puede llamar “el cuchillo suave”[2] del racismo cotidiano.

Colombia, como los demás países de America Latina, es un país brutalmente racista: los negros están subrepresentados en los espacios de privilegio y poder. La proporción de negros en las universidades públicas colombianas consigue ser más vergonzosa que la brasileira. Las cadenas de televisión mas parecen que están en Suiza con su obsesión en presentar  en las pantallas un país blanco. Según Afrodes (Asociación de Afrodescendientes Desplazados), de los más de 6 millones de desplazados por el conflicto armado, 2 millones son negros[3]. Departamentos como Choco y Nariño  registran indicadores sociales como analfabetismo, falta de acceso a la salud, desnutrición crónica ymortalidad infantil que deberían por lo menos hacernos todos llorar[4]. Informe de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, (CIDH) revelaba en 2009 que 27% de los adolescentes afrocolombianos no tienen acceso a la educación media. Ahora en 2015 la CIDH llamó la atención de las autoridades colombianas sobre la grave situación en las ‘zonas de conflicto armado’: el desplazamiento forzado, el asesinato y la violencia sexual siguen siendo una estrategia de guerra en contra de los territorios negros. El asesinato de Gilmer Genaro García Ramírez, en el último mes de agosto es solamente uno de los muchos casos de asesinato de líderes negros y negras en la región del Pacífico Colombiano[5].

Si es verdad que desde la abolición de la esclavitud, hace un siglo y medio, no hay discriminación formal en Colombia (en verdad el país es uno de los más progresistas en términos leyes que garantizan políticas multiculturales), la realidad muestra que el racismo no es una excepción como  nos quieren hacer creer los medios de comunicación con lo que le pasó a Carlos Angulo. Faltan negros en los espacios de poder y privilegio. Sobran negros trabajando en el ‘rebusque’ en las calles o en la servidumbre neocolonial en el empleo doméstico. La tensión racial, enmascarada en el discurso de la cordialidad, puede ser vista por ejemplo en el hecho de que taxistas de Bogotá seleccionan sus pasajeros de acuerdo con el color de la piel,[6] o, en lo que una socialite caleña lo dejó   escapar en entrevista a la revista espanola “Hola”, no somos racistas, “en Cali trabajamos con personas de color".[7]  O sea, “las personas de color” son bienvenidas…. Con tanto que sepan su lugar en el orden social. 

Foto del periodico "El Espectador" denuncia la discriminación racial en la capital colombiana. Foto: Luis Fernando Valencia

Amnesia y verdad racial

Carlos mismo dejó explicito que su ‘encuentro racializado’ con la policía no es una novedad. “Parece que este país no tiene ningún antecedente de racismo….si vemos la historia  de Colombia, ha sido racista, completamente racista con el pueblo negro. Ha esclavizado  por 350 años el pueblo negro y lo tiene en condiciones de vida parecida a 150 años  aun que nosotros seamos supuestamente, ante la ley, considerados hombre y mujeres libres”, dijo en entrevista a la Radio Minga Web. 

¿Por qué entonces el escandalo frente el video de un hombre negro siendo requisado por dos agentes de la Policía Nacional? Porque la sociedad no se escandaliza con los índices insidiosos de calidad de vida de la población afrodescendiente en la orilla del rio y en el casco urbano de ciudades como Cali, Buenaventura, Bogotá…? El vídeo llama la atención no por lo que es (un gesto mundano, ordinario, normalizado de una persona negra más siendo humillada en una calle de una ciudad cualquiera). El vídeo causa perplejidad a la sociedad civil blanco/mestiza porque no se esperaba que ‘el negro’ levantara la voz y rechazara ser víctima del racismo cotidiano. El video llama la atención porque la violencia de la policía es una violencia pornográfica, explicita, al contrario de la violencia cotidiana silenciosa en la cocina de las elites, la violencia de la representación estigmatizada de la infancia negra en los libros didácticos, en el asesinato de la auto-estima de los jóvenes negros en los medios de comunicación, la segregación espacial de las ciudades racialmente divididas.

Un paralelo perturbador con la realidad brasilera: en mayo de 2012, Paulo Sergio, un hombre negro, escaló el lastro de la bandera brasilera en la Plaza de los Tres Poderes, en Brasilia, gritando: “Brasil es una patria asesina! Brasil  mata a los negros!”. Su denuncia causó  alboroto semejante y fue  presentada en los medios brasileños   como un acto de trastorno   mental, aunque Paulo Sergio tenía  toda la razón. Entre 2002 y 2012 el país del futbol ha asesinado a 272,000 negros/as. En el nordeste brasileño, la tasa de homicidios de jóvenes negros es de 80 para cada 100,000, mientras que a de los jóvenes blancos es de 17/100,000[8]. Obviamente muchos de los asesinatos no tienen el envolvimiento  de la policia, aunque las fuerzas policiales de Brasil han asesinado a 11, 197 personas en los últimos diez años y 70% de estas eran negras[9].




Como en Colombia, la violencia homicida de las ciudades brasileras es también una violencia racializada que le roba años de vida a las personas negras. Como en Colombia, la sociedad civil brasileira responde con indiferencia a la tragedia diaria del racismo anti-negro. La condición negra es una condición tan precaria y a lo mismo tiempo tan ‘natural’que la reivindicación de ser ciudadano, presente en el gesto de Carlos Angulo y en la protesta solitaria de Paulo Sergio, no lo conmovió a nadie. Que Brasil sea una patria asesina de negros es algo tan natural que el dicho popular trágicamente reproducido hasta por las victimas del racismo es que ‘derechos humanos son para los humanos’ y que los negros son ‘elementos sospechosos’, y que los que reclaman son “acomplejados”.¿Alguna coincidencia con Colombia?

Luchar para ser incluido en la comunidad ‘humana’ (quiere decir, ser reconocido como humano) parece algo inconcebible para el siglo XXI cuando mirado desde la sociedad civil. Sin embargo, mientras otros grupos se organizan para luchar por derechos sociales  bajo categorías como “trabajadores”, “campesinos” y “ciudadanos”, los negros y negras (en Brasil, en Colombia, y en toda América Latina) todavía luchan por ser reconocidos como humanos. Esta es la distinción fundamental que ni mismo la mas progresista izquierda latino-americana ha comprendido. La condición negra es la condición paradigmática del “no-lugar”, o, utilizando una expresión cara a Frantz Fanon, los negros ocupan la “zona del no-ser”[10]. Raza tal vez no explique todo, pero raza sigue siendo una herramienta de dominación importante en nuestro régimen racializado de ciudadanía.

Es por esta lógica que uno puede entender el desahogo de Carlos Angulo frente a la interpelación racial: “una requisa, negro”. Obviamente que “negro” aquí no es solamente un adjetivo (cualquiera que sea la connotación empleada) es más bien un marcador fundamental de la distinción entre humano y no-humano, ciudadano y delincuente. Esa doble negación, ni derechos ni humanos, es lo que uno capta de la frustración y del grito de rabia de un “negro” detenido en su camino al trabajo, mientras los “ciudadanos” siguen libres ejerciendo su derecho de ir y venir. Las dos categorías “negros” y “ciudadanos” son irreconciliables porque la nación no es hecha para los negros/as. Como lo dice Carlos “nosotros los negros hemos hecho una enorme contribución a la construcción de la nación pero no respetan nuestra humanidad”. Este es el impase histórico para Colombia, para Brasil y para la América Afro-Latina. ¿ Donde situar a las gentes negras en el proyecto de la nación? En este sentido, los dos patrulleros de la Policía Nacional han prestado un servicio a Colombia: han expuesto la verdad racial que produce identidades patologizadas y sostiene privilegios en la tierra del realismo mágico.


Notas:



[1] Jaime A Alves es profesor de antropologia de la City University of New York/CSI y miembro del movimento negro en Brasil. Es también investigador asociado del Centro de Estudios Afrodiasporicos (Grupo Interseccionalidades)  de la Universidad Icesi. Email: amparoalves@gmail.com
[2] Por supuesto no es tan ‘suave’. Aun que en otro contexto, estoy tomando de préstamo la expresión a Arthur Kleinman y Veena Das. ‘Remaking a World’. U California Press.
[3] En “Afrodes Statement on Colombia Peace Process, disponible en http://colombiapeace.org/2014/06/26/afrodes-statement-on-colombia-peace-process/
[4] Para un reciente análisis de la condición racial en Colombia , ver por ejemplo el Boletin Polis/Universidad Icesi., ano 9, n.13.  Disponible en http://issuu.com/polisicesi/docs/boletinpolis_13_final_final/24?e=1176296/13116452
[5] OEA, ‘CIDH condena asesinato de líder afrodescendiente en Colombia’, disponible en http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2015/094.asp
[6] El Pais, “¿Hay un acuerdo ‘racista’ entre los taxistas de Bogota? Disponible en http://www.elpais.com.co/elpais/colombia/noticias/taxista-bogota-dice-presta-servicio-afrodescendientes
[7] La Semana, “La foto de la Discordia”. Disponible en http://www.semana.com/nacion/articulo/la-foto-discordia/250614-3
[8] Indice de Vulnerabilidade http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/jovem-negro-tem-25-vezes-mais-chance-de-ser-morto-diz-relatorio.html
[9] La prensa. ‘Policía de Brasil mata a 11 mil 200 personas en cinco años’. Disponible en http://www.prensa.com/mundo/Brasil-Policia-mata-personas-anos_0_4070592901.html

[10] Frantz Fanon, ‘Black skin, white masks’. Grove press, 2008. Aqui estoy tambien en dialogo con la critica hecha por el movimiento teorico “afropesimismo” liderado por Saidiya Hartman y Frank Wilderson entre otros.

4 de set. de 2015

Narrativas da violência: a construção da masculinidade negra em "Cidade de Deus"


Voce já assistiu o filme "Cidade de Deus"? Como os negros e negras são representados na produção de Fernando Meirelles and Kátia Lund? Qual o impacto da representação patologica da gente negra no cinema brasileiro? Neste artigo explore algumas das artimanhas do racismo brasileiro. Argumento que o corpo dos homens negros é um campo polissémico no qual a dominação racial branca escreve significados patológicos como “bandidos”, “perversos”, inimigos da ordem publica. Por fim, a desumanização simbólica do corpo negro abre caminho para a sua eliminação física. Massacres nas favelas, portanto, são apenas uma outra face do mesmo script. Para ler o texto, Clique aqui!



30 de jul. de 2015

Delinquência Jornalística: mídia corporativa, manipulação editorial e ódio ao Partido dos Trabalhadores

Por Jaime Alves e Raquel de Souza

A delinquência jornalística da grande mídia brasileira não tem limites. A mídia brasileira é um desastre ético-moral. Exemplo? Surpreende a agressiva campanha para destruir a biografia do ex-presidente Lula da Silva e tornar inviável o já desastroso segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. A segunda tarefa é relativamente fácil. Dilma e sua equipe parecem resignados a morrer abraçados a um projeto político que busca apaziguar o “Deus-Mercado” com ajustes e concessões que afetam diretamente os mais pobres. Se por um lado as ações do governo para minimizar a “crise” internacional são deturpadas no noticiário econômico, por outro o governo abraça a “liberdade de imprensa” como um valor absoluto que, portanto, não pode ser confrontado. Dilma continua na firme e autofágica crença de que o controle remoto é o melhor regulador dos meios.

Que a regulação da mídia não seja pauta do governo não surpreende, principalmente em função do esfarelamento da base aliada. O que não é óbvio ou racional é a sua estratégia política de comunicação. O acordo para flexibilizar jornadas de trabalho e evitar demissões é deturpado pela mídia e se manifesta na boca do povo como “governo reduz salários dos trabalhadores”; uma vez que o governo não reclama para si as operações da Polícia Federal, elas são canibalizadas pelo noticiário como ações contra o governo “mais corrupto da história”, e não como um trunfo da transparência no combate à corrupção. A biografia de Dilma Rousseff autoriza a presidenta a ocupar a rede nacional de televisão e apresentar à sociedade um saldo de todas as ações da PF esvaziando o discurso moralista da oposição e da mídia corporativa. Dilma, ao contrário, parece resignada a conceber a PF como uma entidade exógena ao seu governo.

No caso do ex-presidente Lula da Silva, o empenho da mídia para criar factoides revela um amadorismo insultante. O Globo e a Época, por exemplo, têm se esforçado para encontrar um elo entre Lula e a Operação Lava Jato. Requentar matérias antigas, fazer associação entre eventos díspares, sobredimensionar procedimentos-padrão do Ministério Público dando vazão às ambições pessoais de procurador com carreira profissional no mínimo curiosa, e o esforço orquestrado no campo semântico para que termos como “crime”, “corrupção” e “corrupto” sejam incessantemente associados ao Partido dos Trabalhadores e ao seu líder máximo fazem parte do esforço concertado de destruição da biografia de Lula e da trajetória do PT.

Autoritarismo e intolerância

Agressiva em seu esforço em associar Lula aos escândalos políticos, a revista Veja já chegou ao extremo de invadir a casa de parentes do ex-presidente para revelar uma suposta festa milionária do seu sobrinho. Desmascarada a fraude, a revista soltou uma nota de algumas linhas se desculpando ao presidente e à sua família “por quaisquer transtornos que possa ter ocasionado”. Veja minimiza o incidente como “um transtorno”, um errinho do repórter Ulisses Campbell, autor da matéria fantasiosa.  

Veja está bem acompanhada no que diz respeito à delinquência da imprensa brasileira. Do “podemos tirar se quiser”, da agência de notícias Reuters em referência aos escândalos na Petrobras sob o governo FHC, à omissão do nome do senador José Serra – pelo Estadão – em anotações de Marcelo Odebrecht identificadas pela Polícia Federal, a imprensa brasileira vai se especializando cada vez mais em produtora de fraudes jornalísticas. Se o discurso da imparcialidade ainda era vendido como estratégia de propaganda, agora, mais do que nunca, a imprensa está “transparente”. Transparente, para não deixar dúvidas, no sentido de nua, sem verniz, sem compromisso com o mito que a legitimava. De rabo preso com o entrevistado, a Folha de S.Paulo nos dá a dimensão exata desse abandono do “mito”: os documentos vazados pela PF dão conta do “acerto” entre a assessoria de Marcelo Odebrecht e o repórter da Folha para realizar uma entrevista leve, sem assuntos polêmicos e que oferecesse a oportunidade para o empreiteiro “dar seu recado”.

Até mesmo o Jornal Nacional, que em reação à queda de audiência modificou o seu formato para ficar mais “informal”, tem utilizado o recurso de concentrar as notícias relacionadas à Operação Lava Jato no horário próximo à novela das 9, quando os telespectadores mais céticos em relação ao discurso anticorrupção começam a sintonizar para assistir à novela do horário nobre. O ator-jornalista William Bonner aparece agora mais cordial e mais consternado com a “praga da corrupção” que assola o país.

Globo e companhia alimentam um protofascismo que se expressa tanto na estigmatização dos beneficiários de programas sociais, como o Bolsa-Família, como também nas ameaças a figuras e simpatizantes do PT em espaços públicos. A misoginia é outra manifestação deste processo alimentado pelo frenesi anti-pestista. Dilma tem sido criticada não apenas por ser presidenta, mas por ser mulher “severa”, intransigente”, inflexíveis”, características consideradas positivas em chefes de Estado do sexo masculino. Movimentos como o “Vem pra rua”, mobilizados em torno do perigoso patriotismo verde-amarelo, e o panelaço contra a presidenta Dilma expressam também o autoritarismo e a intolerância que chocam o ovo da serpente.

Sofisticação tecnológica e canalhice editorial

Os desdobramentos da Operação Lava Jato podem até comprovar as “sentenças” já decretadas pela mídia corporativa. Pode ser que as investigações tragam à tona novos escândalos envolvendo figuras proeminentes do Partido dos Trabalhadores. Ainda assim, Lula da Silva já é um fenômeno por sobreviver a uma máquina de guerra brutal, sem regras mínimas de combate. Vários nomes do PT foram e talvez sejam condenados, mas Lula, com seu capital político, continua sendo o alvo principal da saga golpista. Dificilmente Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor, sobreviveria a tamanha voracidade midiática. Imagine, se puder, o tempo de sobrevida política de alguns opositores de “tudo que está aí” se a imprensa dedicasse tamanha diligência para desvendar suas práticas predatórias? Um dos papéis fundamentais da atividade jornalística é fazer perguntas. No entanto, a imprensa se recusa a fazer algumas perguntas cruciais para entendermos a corrupção no Brasil porque ela teria que se colocar no lugar incômodo de questionar suas próprias práticas delinquenciais não apenas no jornalismo criminoso, mas também no campo fiscal, como os escândalos da Fifa, do HSBC e de fraudes na Receita Federal.

Os estudiosos da mídia podem discordar sobre o papel dos meios na construção de consensos, aquela velha discussão ainda não resolvida entre o que Umberto Eco chamou de “apocalípticos e integrados”. As quatro vitórias petistas – com o peso das articulação políticas nas redes sociais – seriam um exemplo de que os consumidores de notícias não são agentes passivos. Eles estrategicamente negociam, recusam, dão outro significado, e principalmente produzem contra-narrativas.

Talvez estejamos entre os “apocalípticos”, mas o eco das palavras “mensalão”, “corrupção”, “Petrobrás” e “Lava Jato”, incessantemente repetidas, criou uma rede de significados na qual o Partido dos Trabalhadores está aprisionado. Se por um lado os eleitores do PT são discursivamente associados à miséria, ao voto de cabresto e ao analfabetismo político – Diogo Mainardi, Cristina Lobo e Merval Pereira merecem crédito aqui –, por outro, a mídia fomenta e dá vazão às frustrações de uma classe média ressentida com as (ainda que precárias) conquistas sociais dos últimos doze anos. Os espaços quase monocromáticos da classe média branca começaram a ser parcamente diversificados em função de programas sociais que começaram a arranhar a hierarquia perversa do país. Nesse âmbito, para tal crime não há absolvição.

Na verdade, a narrativa midiática de estigmatização dos eleitores do PT não vem de hoje. Ela começou lá atrás e talvez tenha ficado mais pornográfica nas últimas eleições quando o Nordeste foi “responsabilizado” pela eleição de Dilma, ainda que Aécio Neves tenha perdido em seu estado natal e no Rio de Janeiro, seu estado de residência. O movimento de ruptura democrática estimulado pelas forças derrotadas nas eleições de 2014 revela não apenas uma vocação autoritária, como também uma terminante recusa a aceitar que na democracia o voto de membros de diferentes classes sociais tem o mesmo valor. O esforço midiático de demonização do PT, aliado ao impopular ajuste fiscal, se reflete nos índices perigosíssimos de aprovação do governo Dilma Rousseff, criando terreno fértil para a supuração de articulações políticas que almejam o impeachment.

Se as eleições de 2014 não foram suficientemente “sofridas” para levar a presidenta Dilma Rousseff a repensar as estratégias de comunicação do seu governo, elas pelo menos serviram para deixar os campos muito mais demarcados no que diz respeito à mídia corporativa: a prática jornalística, como trabalho de investigação criteriosa, checagem de fontes e equilíbrio de perspectivas, foi definitivamente abandonada. O que temos agora é a criminosa e calculada produção de verdades, sem consequências para as empresas jornalísticas. Uma mera nota de rodapé, na edição seguinte, já faz parte do cálculo do jornalismo delinquente. Quiçá o momento presente não seja tão mau para as forças progressistas do país. A mídia corporativa está desnuda: sofisticação tecnológica e canalhice editorial.
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originalmente publicado em Observatório da Imprensa, Disponível aqui: http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/a-grande-midia-e-o-odio-ao-pt/