José Carlos
Freire[1]
Em uma ceia, prolongada noite adiante,
perguntara alguém as horas ao suíço de serviço; ao que este, olhando para o
relógio, e verificando que era passada a meia-noite, respondeu: “Já é amanhã,
meus senhores”.
Essa anedota
foi recolhida por Alberto Torres quando, no início do século XX, enfrentava a
tarefa de pensar os limites da República Velha e consequentemente propunha os
rumos para superar seus problemas fundamentais. Guardadas as devidas diferenças
de contexto histórico e ressalvadas as posições ideológicas do autor, ela bem
que poderia ser aplicada a uma reunião da esquerda no tempo presente da
história brasileira.
A pauta da reunião da esquerda teria dois itens
fundamentais: primeiro, o informe de que o intervalo do petismo dentro do bloco
histórico hegemônico burguês acabou; segundo, os encaminhamentos daí
decorrentes. É claro que na política, como na vida, nada é simples. O ocaso do
petismo apresenta desafios urgentes, no qual se situa o debate sobre a
intensificação da ofensiva de direita por meio dos órgãos de imprensa. Ainda
assim, penso ser o momento de muita frieza e cautela no debate porque se é
grande o desafio imediato da conjuntura, maiores serão os desafios colocados à
esquerda nos próximos anos: reconstruir um projeto popular para o Brasil
distante do petismo.
As modestas
reflexões aqui colocadas são tentativas de contribuir para o debate, limitadas
e certamente cheias de lacunas[2].
O urgente parece ser distinguir as táticas imediatas de combate a esta espécie
de “midiocracia” burguesa que vivenciamos da ação estratégica de construção de
um projeto popular para o Brasil, participativo e democrático, que resgate o
referencial do socialismo sequestrado pelo petismo e confinado aos limites da
burocracia estatal, ao pragmatismo político e à manutenção do poder.
- Tentando
compreender o ocaso do petismo
Enquanto vejo
o noticiário para saber quais as novidades de show da realidade que virou a política
brasileira, sigo escutando o tilintar das enxadas das trabalhadoras que limpam
as ruas de pedra do bairro. Trabalho ingrato e duro, sem as mínimas condições
de proteção do sol e do calor, sem a mínima assistência do poder público que as
lança às ruas como as mineradoras lançam os mineiros às montanhas, contando
simplesmente com a boa vontade dos moradores em ceder-lhes um copo d’água ou o
banheiro para uso, elas seguem, duramente existindo, bravamente resistindo.
A situação
destas trabalhadoras se assemelha à daqueles em estado de semiescravidão das
lavouras de cana, dos que oscilam entre o desemprego fruto da implementação
tecnológica do agronegócio e o subemprego nas panhas de café, retiro de leite e
colheita de frutas, dos que se matam por um salário miserável nas capitais do
Brasil. As condições desses trabalhadores reais, como estas que a minha porta
enxugam o suor no escaldante sol de Teófilo Otoni, substancialmente, não se
alteraram no intervalo que foi os
Governos do PT. O que não implica em dizer que benefícios sociais não foram
realizados. O determinante é que estruturalmente o Brasil não se alterou. Daí a
dificuldade de se criticar o petismo que se mostrou tão aguda nos momentos de
eleição em 2006, 2010 e 2014. Mudou ou não mudou? O pensamento binário – do
qual também servem de exemplo “PT ou PSDB?”, “Dilma ou Aécio?”, “Lula ou FHC?”
e tantos outros a que a mídia nos leva a pensar e que o petismo ajudou a
alimentar – não nos ajuda. O Brasil mudou e
não mudou. E nessa amálgama de mudança e permanência, alma da história,
considerando que em nenhum momento a hegemonia burguesa foi ameaçada, o pouco
que mudou não alterou o predominante que não se alterou. A sutil diferença dos
governos Lula e o primeiro mandato de Dilma em relação aos governos anteriores
do período pós-redemocratização não alterou o essencial: continuamos um país
subdesenvolvido, com uma gritante segregação social, dependência econômica
crescente, não apenas com pouca industrialização, mas com desindustrialização e
uma democracia de fachada que transforma o popular em plateia e o parlamentar
em palco.
Nesse
registro interpretativo, não só porque não conseguiria fazer uma análise
consistente do ocaso do petismo, mas porque penso que os elementos essenciais
já foram colocados no debate, destacado quatro abordagens: Fernando Silva, em
seu texto “Precisamos construir outro projeto de país, longe dos governistas”[3];
Fábio Nassif, com “É possível combater a direita e dizer adeus ao lulismo”[4];
Mauro Iasi, com “A crise do PT: o ponto de chegada da metamorfose”[5];
e Valério Arcary, no texto de 2015 “É possível reconstruir uma esquerda
revolucionária depois da ruína do PT ou esta soterrará toda a esquerda?”[6].
Passo a alinhavar livremente alguns pontos presentes nestas análises que me
parecem convergentes, substancialmente, e podem nos dar pistas para entender o
processo para além da avalanche de elementos que a conjuntura diariamente nos
impõe:
· A responsabilidade primeira por termos chegado
aonde estamos cabe aos governos petistas. O modelo de desenvolvimento
(neo-desenvolvimento, social-desenvolvimento, enfim, palavras tantas usadas
para ocultar a essência que é mesma), calcado, na agroexportação extrativista,
com tímida distribuição de renda sem mexer nos lucros do capital financeiro
representa uma forma de conciliação de classes, expressa no lulismo. Mais que
isso, a opção de conciliação com a burguesia nefasta que temos no Brasil
implica, necessariamente, em traição de classe. Num contexto específico de
ampliação de mercado na periferia, grande quantidade de capital disponível,
numa margem grande de manobras, Lula foi aceito pelo capitalismo global. De sua
parte, ele agradeceu o acolhimento, aplicou as medidas necessárias – já
previstas na Carta ao Povo Brasileiro de 2002 – e convenceu as massas de que
estas regras do jogo eram administráveis. O efeito colateral trágico foi a
despolitização das classes populares. Ao desarmar os
movimentos sociais de sua autonomia necessária, ao congelar a reforma agrária
com o agronegócio, ao responder ao extermínio de jovens e negros da periferia e
ao tratamento das posições de esquerda como fatos policiais pela Lei
Antiterrorismo, entre tantas outras ações ao longo destes 13 anos, o PT
desorganizou as classes trabalhadoras e deslocou o campo da luta para o Estado, onde a burguesia tem o mando de campo, é dona do
uniforme, da bola, contrata o juiz e ainda cobra ingresso.
·
O momento atual do PT
não é fruto do acaso, e sim decorrência do caminho que o partido escolheu. Da articulação
entre conquista de espaço no poder, de um lado, e a construção de um movimento
de massas de outro, modelo que está na origem do Partido dos Trabalhadores,
caminhou-se paulatinamente para a ênfase na disputa pelo poder para que depois
se buscasse avançar rumo ao socialismo. Um programa antilatifundiário,
anti-imperialista e antimonopolista exigiu, gradativamente, do partido a
acomodação de táticas cada vez mais flexíveis para se chegar ao governo. Quando
lá se chegou, a antiga articulação entre busca do poder e avanço da organização
de massas cedeu lugar à estrita manutenção do poder, reduzida a alianças
parlamentares e performances eleitorais. Ampliar
alianças, vencer eleições e garantir a governabilidade. Do ponto de vista de um
“partido”, tecnicamente correto; do ponto de vista “dos trabalhadores”,
cooptação.
· A direita não precisa mais de intermediários,
prefere governar diretamente. Ao tentar se livrar de Lula, a burguesia se
orienta pela estabilidade. Não que Lula represente um projeto socialista de
enfrentamento, o que colocaria o cenário eleitoral de 2018 como incerto. Mas
porque, dadas as necessidades de aprofundamento da ofensiva neoliberal, não
cabe absolutamente nenhuma concessão às classes populares, nem mesmo aquelas
que o modelo de conciliação em um momento anterior tornou possível. A margem de
manobra que a conjuntura de 2003 e seguintes permitiu não existe mais. É para
retomar o governo de forma direta e empreender avanços no modelo neoliberal que
todo o circo se arma, não porque Lula ou PT represente a esquerda ou o
socialismo.
· A defesa do governo Dilma e de Lula pela
esquerda representa uma armadilha. Não obstante o jogo ilícito
jurídico-midiático armado, não cabe à esquerda efetivamente comprometida com a
transformação social fazer coro às manifestações de apoio ao governo que
misturam, de modo deliberado, denúncia ao modo como a ofensiva da direita se
apresenta com uma necessidade de
defesa de Lula e Dilma. São coisas distintas. Ademais, a defesa incondicional
do governo e de Lula, como apresentam os setores petistas e que seduz enorme
parcela dos setores da esquerda, implica quase que de modo fatal o silêncio
sobre a corrupção, sobre o enriquecimento de lideranças populares, sobre o modo
com se rasgou a ética o espírito republicano, reduzindo-se tudo à tese do
golpismo.
· Defender o lulismo implica em aceitar as
condições da hegemonia burguesa. O resgate do lulismo, na forma
messiânica que os setores mais à direita do PT propõem, é o mesmo que defender
as pazes com a burguesia corrupta brasileira, que não tem projeto nacional de sociedade
que possa realizar mudanças civilizatórias profundas, muito menos em aliança
com a classe trabalhadora. Acreditar que esta burguesia possa defender
bandeiras anti-imperialistas, antimonopolistas e antilatifundiárias representa
uma ingenuidade que a esquerda brasileira já deveria, no seu conjunto, ter
superado há muito tempo. No limite, retomar a conciliação de classe, o lulismo,
ainda que hipoteticamente possível, implica em aceitar as regras atuais do
jogo, que são piores que as de 2003: avançar sobre os trabalhadores nos seus
direitos mais elementares. O preço da governabilidade, no contexto de hoje, não
é a flexibilização ou mistificação de um programa democrático popular e sim a
sua renúncia radical e irrestrita.
· É necessário defender de modo crítico o Estado
democrático de direito e denunciar o papel da mídia. Não podemos nos calar
diante dos métodos judiciais aplicados nos últimos dias que, além de
questionáveis e fundados em interpretações mais políticas que jurídicas, coloca
uma linha direta entre Polícia Federal e grande mídia, especialmente a Rede
Globo. Vivemos uma espetacularização do político que combina o princípio do
“pão e circo” dos seculares modelos de dominação com os sofisticados
instrumentos seletivos de informação. Ocorre que a mídia burguesa e a elite
brasileira sempre foram reacionárias, o que não significa que devamos isentar
de responsabilidade quem se aliou a elas. O PT propagou a ilusão de que poderia
tê-las como aliadas, negociou com elas e governou para elas. A defesa do Estado
democrático deve se basear na garantia da legalidade, para que o que fazem hoje
com Lula e o PT não se torne um elemento da cultura política e, portanto,
apresente-se como naturalizado.
· É preciso muita cautela com a tese do golpe. O modo
apressado com que os governistas interpretam o momento como golpe, associando-o
sem mediação alguma com o contexto de 1964 é perigoso. Potencializada pelas
redes sociais, a tese do golpe ganha espaço crescente. Ainda que evidente a
manipulação de interesses e informações, não temos, ainda, um processo que coloque partidos na ilegalidade, feche
sindicados e movimentos sociais, proíba a liberdade de expressão, exile
políticos etc.
· Nem Lula pode salvar o projeto petista de poder. Há uma
articulação direta entre o agravamento da crise social e econômica que atinge
os trabalhadores, por um lado, e a insatisfação de setores da classe dominante
– parte do mercado financeiro e a grande mídia corporativa, por outro. O que
nos impede de pensar o “efeito Lula” como solução mágica. Nem com toda alquimia
política, Lula poderia, neste contexto, que difere radicalmente de seu primeiro
mandato, articular interesses díspares como são a necessidade do grande capital
e as das classes populares. Não há mais margem de manobra. Não deve ser subestimada
a capacidade política de Lula e talvez até venha a reerguer seu projeto de
voltar ao poder, na cadeira presidencial. Mas será outro momento, outro Lula e
não a pura reedição de 2003.
· Enquanto a direita se articula com facilidade a
esquerda é heterogênea. Mesmo
que possamos formular de modo variado a configuração da esquerda – quer
dividida entre reformistas, centristas e revolucionários, quer, numa outra
forma, dividida entre moderados e radicais, o fato é que em conjunturas
distintas a esquerda tem comportamento diferenciado no seu interior.
Simplificando ainda mais, no nosso caso, poderíamos falar de uma esquerda que
se opõe ao petismo e uma que ainda aposta nele. Como nas conjunturas das
últimas eleições presidenciais, quando se descortinou a ameaça efetiva do
retorno de um governo de direita (ressalvando-se que, nesta leitura, o PT seria
de esquerda), no presente, a tendência é de uma hegemonia, no campo da
esquerda, do reformismo. Enquanto a esperança seria de que setores e agentes
progressistas desembarcassem do governo para fortalecer uma plataforma de esquerda
mais combativa, o que ocorre é que muitos setores titubeantes que ensaiavam uma
ruptura acabam por reembarcar no trem do governo. Numa palavra: a esquerda de
oposição ao governo precisa de muito trabalho, debate, paciência, articulação e
organização para se mover no terreno argiloso que reduz todo jogo a uma disputa
entre os do bem (pró-governo) contra os do mal (antigoverno).
Evidentemente
a situação exige uma análise muito maior. No entanto, os elementos acima
parecem suficientes para pensarmos os desafios que se colocam para a esquerda
brasileira atual, tomada, nestas breves reflexões, como o conjunto das forças
sociais que, situadas na defesa das classes trabalhadoras, colocam-se contrárias
tanto ao governo quanto à ofensiva da direita, rompendo o dualismo nefasto em
que fomos lançados.
2.
Tarefas
urgentes para a esquerda
Passo a
elencar algumas tarefas que me parecem imprescindíveis. Longe de qualquer
pretensão de receituário ou coisa do tipo, nada mais são do que tarefas
permanentes da esquerda que, em alguns contextos, se apresentam de modo mais
urgente, como é o caso brasileiro atual.
a)
Esforçar-se
por distinguir as coisas de modo crítico
“Buscar a real identidade na
aparente diferença e contradição, e procurar a substancial diversidade sob a
aparente identidade é a mais delicada, incompreendida e, contudo essencial
virtude do crítico das ideias e do historiador do desenvolvimento histórico”
(Antonio Gramsci)
Na avalanche
de coisas que a conjuntura nos lança a cada dia, a cada hora quase, torna-se
difícil compreender quem é quem e que jogo é jogado. Esta dificuldade é tanto
maior quanto for o isolamento do militante de esquerda. Aponto apenas três
elementos que me parecem urgentes para fomentar o debate. Claro que há muitos
outros. Primeiramente, parece-me fundamental superar a aparente associação que
é feita entre oposição ao governo do PT e negação das conquistas realizadas
desde 2002 no plano social. Ser contrário ao governo não é o mesmo que negar o
avanço representado pela inclusão de jovens pobres e de negros na Universidade,
a expansão do ensino superior público, o debate e ações em torno da diversidade
afetivo-sexual, o enfrentamento da violência contra a mulher, a demarcação de
terras indígenas e quilombolas, ainda que insuficientes. Estas conquistas,
inclusive, não podem ser atribuídas exclusivamente ao governo, mas também à
luta histórica de movimentos diversos que por elas batalharam. A saída para
esta confusão de ideias parece estar em compreender que a correlação de forças,
políticas e econômicas, nacionais e internacionais, permitiu este avanço em um
momento, agora não permite mais, mesmo com toda a retórica de luta empreendida
por Lula. E não se trata de um agora imediato:
a inflexão já se acentua desde o primeiro mandato de Dilma.
Um segundo
ponto é a insistência quase religiosa dos setores governistas em opor o
programa do PT ao do PSDB como extremos. Ressalvadas as origens dos dois
partidos e sua composição, programaticamente situam-se na defesa da mesma ordem burguesa. Deste imbróglio,
resultam as propostas capitaneadas, mas não monopolizadas, por atores como a
CUT e a UNE: apoio ao governo e cobrança por mudança no modelo econômico para
favorecer os trabalhadores, como se fossem ações convergentes e não opostas. O
caso do MST é a dor mais doída, não apenas por sua demora em romper com o
lulismo que se prolonga demais, mas porque guarda em suas bases uma experiência
de formação e organização e um potencial de lutas enormes. A saída dessa
confusão parece ser a necessidade de se colocar em primeiro plano o
posicionamento de classe e não o posicionamento de poder, da qual decorrerá a
constatação de que, substancialmente, PT e PSDB não se diferem mais.
Em terceiro, tomado
aqui de modo muito genérico, refiro-me ao conceito de bloco histórico,
entendido como o modo pelo qual economia, política e ideologia se articulam no
interior de uma sociedade em um período histórico determinado. Corremos o
risco, numa leitura apressada, de afirmar que achegada de Lula à presidência
inaugurou um novo bloco histórico, este mesmo que a elite brasileira e seus
órgãos de imprensa estariam propondo agora o fechamento por meio de um golpe.
No entanto, se atentarmos para o fato de que, para chegar ao poder, o PT teve,
como nos mostra detalhadamente Mauro Iasi em seus estudos, de negociar seu
programa e abrir mão de seu caráter socialista, concluiremos que o breve intervalo petista não alterou o capítulo
burguês pós-64. Em outros termos, o bloco histórico pós-golpe militar
consolidou, dito aqui sem maiores aprofundamentos, um tipo de capitalismo
dependente no Brasil que mesmo a redemocratização e a ascensão do PT ao poder
não conseguiram alterar. Aliás, Lula foi um agente, naquele momento, necessário
exatamente para combinar desigualdade social interna administrada por
benefícios sociais e aumento do crédito – estas mesmas medidas que ele cobra
hoje do Governo Dilma – com alta lucratividade do grande capital nacional e,
principalmente, internacional.
Ocorre que
dentro de um bloco histórico, pode haver pequenos intervalos que não invalidam a lógica dominante. Quando um
intervalo termina (“já é amanhã, meus senhores”), não significa que há um novo
bloco, apenas a continuidade do que já estava afirmado. A suposta ruptura que o PT teria representado
na sociedade brasileira – propagandeada pelo ideário do novo-desenvolvimentismo
e conceitos similares – nada mais foi que uma variação no modo e na intensidade
como a burguesia brasileira administra o país desde 1964, ali sim, o início de
um bloco histórico que não está nem de longe ameaçado de ruir. Só ruirá quando
houver real enfrentamento da dominação burguesa pela organização popular e
discussão efetiva de nossos problemas estruturais. Fora isso, se é Lula, se é
Dilma, se é Temer ou se é Aécio, trata-se apenas de escalação diferente para o
mesmo time. Lula, outrora atacante e artilheiro, caiu para zagueiro, gandula e,
por fim, é convidado a se retirar do campo e do estádio. O jogo continuará.
Agora, é melhor sem ele. Mas o mercado da bola transforma vilões em heróis. Nas
curvas nebulosas da política brasileira, poderá ele ser ainda contratado?
Desconfio que não. Ele parece apostar que sim. De qualquer modo, ironicamente,
os torcedores deste grande espetáculo futebolístico vestem a camisa da ilibada
e altamente respeitada CBF. O povo brasileiro, bem, este permanecerá de fora,
recolhendo latas amassadas.
b)
Conservar a
experiência original do PT de base e superar o mito Lula
“Aufheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos
os verbos do idioma alemão. Aufheben
significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à
história humana, que morrendo nasce e rompendo cria”
(Eduardo
Galeano)
A superação de Lula como mito messiânico que
resolverá todos os problemas precisa ser enfrentada com coragem e seriedade
pela esquerda. Mito se supera com leitura histórica concreta. Ainda que se safe
no tribunal da Lava Jato, naquele que é mais importante para nós, o tribunal da luta concreta dos trabalhadores,
neste, Lula perdeu em todas as instâncias, ainda que tenha entrado com muitos
recursos que precisem ser analisados. Será o processo difícil de superação de
um mito. Mas nem mesmo mil discursos inflamados de Lula podem abalar a
convicção daqueles que com seriedade, sem demagogia e sem pragmatismo político
empreendem uma busca efetiva por transformação social no Brasil. Ouvir Lula, é
certo, é sempre um risco. Alquimista da política, ele enfeitiça.
No entanto, Lula não esgota tudo o que foi o PT.
Nesse sentido, a experiência original de base do partido é algo que precisamos
revisitar, de modo crítico. Ainda que se considere que desde o início a cúpula
sindical sempre se pautou pelo modelo de conciliação, verdade é que nas
comunidades, nos núcleos de base a experiência do partido como construção
popular foi rica e representa um dos momentos mais significativos da nossa
história. E isto não se deu apenas nas regiões industriais, entre a parcela
proletarizada dos trabalhadores brasileiros. Deu-se também em iniciativas pelo
interior do Brasil de luta pela terra, organização de sindicatos rurais,
entidades de formação de quadro que ainda hoje resistem apesar da cúpula do PT.
O partido abarcou forçar sociais variadas, movimentos, grupos de igreja etc. Antes
de se tornar um partido “do capital”, em situações reais, não apenas no
discurso do Lula, ele foi “dos trabalhadores”. Esta experiência deve ser
conservada e recriada sob novos referenciais.
c)
Formação
política, vinculação a coletivos de luta e aposta na juventude
“É preciso reconhecer
que a história é tempo de possibilidade
e não de determinismo, que o futuro é
problemático e não inexorável”.
(Paulo Freire)
A militância de esquerda sempre exigiu um
esforço sobre-humano: além das lutas, além do trabalho, além da sobrevivência,
ainda é preciso estudar, formar-se. O momento exige, de modo especial,
capacidade de entendermos de onde viemos e como chegamos a este ponto. Sem
isso, dificilmente traçaremos propostas factíveis de futuro.
Os tempos que se avizinham não serão fáceis,
exigirão de nós muita convicção pessoal e o necessário engajamento em coletivos
de luta ou fortalecimento daqueles que já o fizeram. Dos mais variados, não
pesa tanto agora qual partido ou movimento, desde que se pautem por um caminho
de ruptura – ainda que leve muito tempo – e não de conciliação. Também teremos
de nos adaptar, no conjunto da esquerda, com o que passou aquela sua parcela
que se manteve ao longo desses anos em oposição ao governo: sem financiamento,
sem auxílio do governo, sem ônibus ou passagem para viagens, sem a mínima
estrutura para organização de eventos. Voltaremos a condições gerais de luta
muito difíceis. Na provável quadra história de direita, não só no Brasil, mas
na América Latina, teremos de nos fortalecer teoricamente e com ações práticas
dentro das possibilidades e determinações de cada movimento, região ou
situação.
O que não podemos, neste contexto, é confundir
dificuldade com impossibilidade. O que deve mover um militante de esquerda nos
tempos que se iniciam é a convicção expressa por Vandré em uma de suas canções:
“Eu canto o canto, eu brigo a briga, porque sou forte e tenho razão”. Força e
razão que serão maiores na medida em que conseguirmos romper o isolamento e a
dificuldade de diálogo no interior da esquerda, por vezes, tão presa a
discussões escolásticas e definições linguísticas.
Por mais longa que possa ser a caminhada, ela
exige convicção dos mais experientes e aposta nos mais jovens. Os espaços
precisam ser criados ou fortalecidos. O que não pode faltar é esperança. A
esperança crítica de que falava Paulo Freire. Que não implica em um imobilismo
acomodado, mas na imersão radical em um processo mesmo sabendo que os
resultados podem não ser imediatos. Nas palavras de Pedro Casaldáliga, “saber
esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não
permite esperar”.
d)
De imediato: e agora?
“Pode ser que ainda não seja a hora de uma nova esquerda socialista de
massas, mas nunca será se ficarmos
aprisionados nas velhas âncoras
que
podem nos levar juntos ao fundo mar”.
(Fábio Nassif)
Estas breves
ponderações não resolvem a questão central que nos inquieta: o que fazer nos
dias que correm com ações cada vez mais ofensivas da direita para tirar o PT de
cena, com um braço jurídico e outro midiático, a velha combinação de força e
consenso que Maquiavel já nos havia ensinado há tempos. É claro que, em
contraponto aos protestos contra Dilma e contra o reingresso formal de Lula no
governo, haverá manifestações nos próximos dias pelo país de apoio. A história
não permite que tenhamos a compreensão total das coisas, para só depois nos
posicionarmos. Ela vai acontecendo, sem nos esperar.
É muito
difícil que em uma manifestação contra a mídia e as ações arbitrárias da
Polícia Federal, resumidas na ideia do “contra o golpe”, não haja uma
decorrência espontânea para o apoio ao governo e, diretamente, a Lula. Será
possível pautar estas reais ameaças ao Estado de Direito e ao mesmo tempo
colocar-se contra o governo que empreende um acirramento da ofensiva
neoliberal? É algo que as bases
organizadas de cada manifestação devem debater. Seria descabido apontar uma
resposta válida para todos os casos.
As duas
propostas ventilidadas em setores mais combativos da esquerda, o “Fora todos!” e
“Eleições gerais já!, em tese são coerentes com o que o momento pede, mas
esbarram na falta de organização popular que as respalde. O cenário, embora
mude toda hora, parece apontar para a opção da direita pelo impedimento de
Dilma, o que coloca o poder nas mãos do PMDB e, certamente, freará a força das
investigações. Tirando o PT, dificilmente a Lava Jato manterá seu vigor. O
bloco histórico se acomoda e voltamos à normalidade. Isso indica que a ideia de
novas eleições vai esbarrar não só na falta de organização da base mas também
na resistência da direita.
Sem bola de cristal, sem passe de mágica,
resta-nos a paciência e o diálogo como forma de reagir à intolerância, o
encontro face a face com companheiros de luta para resistir ao isolamento e a
construção coletiva como forma de traçar caminhos coerentes com um projeto
popular, democrático e socialista. Não será fácil. O que não significa que é
impossível.
[1] Professor na Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Campus de Teófilo
Otoni/MG. Email: freire.jose@hotmail.com
[2] O texto se distancia de
qualquer proposta de análise especializada sobre a política ou a conjuntura. É
muito mais uma tentativa de debater sobre o momento presente em continuidade
com os muitos diálogos com companheiros e alunos, em especial, da disciplina de
Ciência Política no atual semestre.
[3] SILVA, Fernando. “Precisamos
construir outro projeto de país, longe dos governistas”. Correio da Cidadania. 11/03/2016. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11491:2016-03-12-00-01-09&catid=72:imagens-rolantes
[4] NASSIF, Fábio. “É possível
combater a direita e dizer adeus ao lulismo”. Correio da Cidadania. 05/03/2016. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11477:2016-03-05-14-39-19&catid=72:imagens-rolantes
[5] IASI, Mauro. “A crise do PT:
o ponto de chegada da metamorfose”. Blog
da Boitempo. 10/03/2016. Disponível em: http://blogdaboitempo.com.br/2016/03/10/a-crise-do-pt-o-ponto-de-chegada-da-metamorfose/
[6] ARCARY, Valério. “É possível
reconstruir uma esquerda revolucionária depois da ruína do PT ou esta soterrará
toda a esquerda?”. Correio da Cidadania. 05/10/2015.
Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11138:2015-10-06-00-07-31&catid=25:politica&Itemid=47