Jaime Amparo-Alves
Nada de original. Em um artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 18 de fevereiro, intitulado “Fora da Lei”, Demétrio Magnoli reproduz com um atraso de dez anos a crítica feita por Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant sobre uma suposta importação do modelo de relações raciais estadunisense pelo movimento negro brasileiro e seus intelectuais. Em Sobre as artimanhas da razão imperialista os autores acusavam os intelectuais negros estadunidenses de imperialistas culturais – a crítica é direcionada principalmente, embora não exclusiva, ao livro de Michael Hanchard ‘Orfeu e o poder’ (2001) - e a emergente academia negra norte-americana de impor uma falsa universalização do racismo aos países do chamado terceiro mundo.
Haveria um certo excepcionalismo brasileiro no campo das relações raciais que faria o Brasil ser diferente. Ainda, os autores rotulavam o intercambio – cada vez mais crescente – entre intelectuais negros dos dois países de tática estratégica para a imposição de um modelo bi-polar de relações raciais só presente na America do Norte. As agencias de financiamento como a Fundação Ford aparecem na critica como o exemplo mais concreto do imperialismo cultural disfarçado de intercambio acadêmico.
O debate que se seguiu à crítica de Bourdieu e Wacquant já é conhecido. John French, Edward Telles, Jocélio Telles, Michael Hanchard, entre outros, responderam dando o merecido crédito à autonomia intelectual negra no Brasil e mostrando que a tão propalada excepcionalidade brasileira não se sustenta quando contrastada com as condições de vida dos brasileiros negros.
A volta ao debate nos dá a oportunidade de reenfatizar um aspecto central da experiência negra nas Américas: em todos os países negras e negros ocupam índices cruéis na hierarquia social. Não há nada de excepcional no quadro de relações raciais do Brasil e a similaridade nas ‘condições materiais de existência’ – em que pese suas especificidades – ajudam a tecer uma comunidade política imaginada e concreta, a Diáspora Africana.
O que há em comum na experiência dos jovens negros das favelas cariocas e os jovens negros dos guetos de Chicago ou Nova York? O que une o viver urbano de negras e negros do Haiti, da Colômbia, de Cuba, dos EUA, do Brasil, dos países africanos? Quais as especificidades e as semelhanças na representação midiática de negras e negros nas Américas e nas Áfricas? Portanto, para desconstruir o mito da suposta importação acrítica do padrão de relações raciais dos EUA, teríamos que perguntar aos neo-freirianos do momento por que a fobia com a crescente conscientização política transnacional negra e por que os negros brasileiros aparecem em seus textos como incapazes de possuírem uma autonomia intelectual própria.
Tal fobia está presente nos textos de Demétrio Magnoli. Em Fora da Lei, o autor repete as táticas já conhecidas nos seus textos anteriores. Trata-se do recurso lingüístico de imputar a outrem afirmações que ninguém fez. Quem no movimento negro teria se oposto à defesa da qualidade do sistema público de ensino? Quem teria afirmado a existência biológica de raça? Haveria uma incompatibilidade na luta pela democratização do acesso à universidade pública e a defesa da escola pública?
De um lugar social racialmente privilegiado, os neo-freirianos ambiguamente reconhecem a existência do racismo, mas não admitem a luta política contra suas manifestações cotidianas. É como se raça fosse uma construção social sem impactos reais diferenciados nas chances de vida e de morte de brancos e negros - não é a toa que O Atlantico Negro, de Paul Gilroy, ocupe hoje no Brasil, mesmo nos círculos radicais negros , um lugar de destaque. Esse social construtivismo na verdade esconde uma paranóia contra qualquer forma de organização política que questione a supremacia branca. Ao contrário do que se quer fazer crer, o que orienta tais posicionamentos políticos não é a preocupação com o renascimento do ‘estado racial’ ou a suposta defesa da igualdade entre todos. Bobagem....
Os terrenos estão bem demarcados e não há ingenuidade no debate: a organização política dos negros e negras representa uma ameaça real ao poder político-econômico de uma elite branca que tem na academia e na mídia seus principais instrumentos ideológicos. Faz sentido, portanto, que intelectuais reconhecidamente competentes no repertório acadêmico como Ivone Maggie, Peter Fry, Márcia Green, e agora Demétrio Magnoli se prestem ao papel de arquitetos do caos e invistam suas carreiras acadêmicas na construção do ‘apocalipse racial’.
O mundo não vai acabar com as cotas nas universidades públicas, como mostra o exemplo positivo da Universidade de Brasília - a primeira instituição federal de ensino superior a aprovar cotas para negros - e das quase cem instituições públicas que adotam algum programa de ações afirmativas. Estas instituições estão recuperando o sentido republicano da universidade pública, ainda que após seis anos de cotas racias, a UnB ainda possua uma população afrodescendente sub-representada (eles são pouco mais de 3 mil dos 26 mil alunos). Mas a verdade é que quem tiver curiosidade de estudar os números da inclusão verá que as cotas raciais começam ajudar o Brasil na longa marcha em busca do reencontro consigo mesmo.
As ‘divisões perigosas’ que historicamente têm colocado em lugares sociais distintos negros e brancos – os primeiros nas favelas, nas prisões, na pobreza, nas estatísticas insidiosas da violência policial, no chão das fábricas e os segundos nas melhores universidades públicas, nos condomínios fechados, na direção dos conglomerados empresariais – são a verdadeira ameaça à efetivação da igualdade substantiva entre todos os brasileiros. A luta dos negros e negras por igualdade de direitos vai ajudar a consolidar a cidadania e transformar a democracia racial em uma realidade concreta. Só a luta organizada por igualdade racial de fato poderá desbancar o mito da harmonia racial.
As ações afirmativas não farão surgir um tribunal racial nem criarão uma ‘rotulação estatal dos cidadãos segundo o critério abominável da raça’. De fato, ‘raça’- como empregada por Demétrio Magnoli - é um critério abominável, como o é sua má-fé e o seu cinismo de colocar na mesma cesta a luta do movimento negro pela igualdade racial e o estado nazista alemão. Ao reivindicar a categoria raça como identidade política, negras e negros o fazem a partir de uma perspectiva crítica e o fazem porque os brancos não deixaram outra escolha no campo das disputas políticas. Nesse sentido, tem sido ainda pouco explorada a discussão sobre a incapacidade da esquerda brasileira em incorporar a dimensão de raça em sua estratégia política. O reducionismo econômico da luta de classes é sintomático da dificuldade, mesmo entre os mais progressistas intelectuais de esquerda, em entender a experiência negra, mas esta é uma outra história.
Racialmente interpelados como ‘negros’ – com toda significação histórica que a palavra carrega – no contexto de desigualdades racialmente estruturadas negras e negros re-significam a categoria ‘raça’ e tecem uma nova identidade política. Fazem sentido da vida e dos seus encontros cotidianos racializados a partir da identificação com um grupo social.
Se no embate político por direitos de cidadania novos brasileiros se reencontram com seu passado e quebram o paradigma da linha cromática sempre em direção ao branco, ainda melhor. O reconhecimento da negritude está em sintonia com a celebração da diversidade étnico-racial tão forte entre nós. Mas é hora de celebrar a diversidade brasileira não apenas no futebol ou no botequim, como certa antropologia da cordialidade sugere. É hora de miscigenar os espaços de poder.
O movimento negro está abrindo, no grito e na raça, uma porta ha tempos fechada. A intelectualidade negra cresce e com ela um novo paradigma na produção de conhecimento sobre as relações raciais no Brasil e nas Américas. Não seria a resistência às ações afirmativas um sintoma da impossibilidade cognitiva dos brancos em reconhecer seu privilegio e o lugar de onde falam?
Para saber mais:
Bourdieu & Wacquant. As artimanhas da razão imperialista. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 1, 2002, pp. 15-33
HANCHARD, Michael (2001). Orfeu e Poder. Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ/UCAM.
Um comentário:
Parabéns Jaime,
Comungo sempre de suas idéias e ideias. Sou uma branca consciente!
Lurdinha Ielo Dore
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