Jaime Amparo-Alves
Na semana passada, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) apresentou no Senado Federal outro substitutivo ao projeto do Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). Trata-se de mais uma das inúmeras emendas que transformaram o projeto original em uma piada de mau-gosto.
Na nova versão apresentada pelo senador do DEM (ex-PFL), se propõe tirar qualquer referência à palavra ‘raça’, desmonta por absoluto qualquer possibilidade de ações afirmativas nas universidades públicas, retira as propostas de políticas diferenciadas para a população negra no Sistema Único de Saúde, rejeita as políticas de combate à violência contra a juventude negra e contra a mortalidade materna negra, recusa a proposta de incentivos fiscais para as empresas que promoverem a diversidade étnica em seu quadro de funcionários. Tudo isso depois da devassa feita anteriormente e aprovada pela Câmara dos Deputados. O que sobrou?
Sobrou uma carta de princípios cheia de bobagens recheadas com verbos do tipo: incentivar, possibilitar, valorizar...... Não vou me aprofundar nas justificativas do senador Demóstenes Torres porque a/o leitora/or deste jornal já sabe o lugar racialmente privilegiado de onde o senador fala. Também já não é segredo para nós os recursos discursivos de uma certa antropologia branca que utiliza estratégias sofisticadas para manter o privilégio racial dos seus representantes a partir da evocação de uma tal brasilianidade/cordialidade que supostamente nos torna iguais no botequim e no futebol. Ainda, dispensa comentários a paranóia branca para com o termo raça, o que revela a sua impossibilidade de ver a condição privilegiada em que vivem aqueles/las cuja cor da pele é fonte de lucro e prestígio.
Detenho-me apenas na posição política do movimento negro frente ao Estatuto. Algumas entidades e tendências políticas - em que pese o esforço bem-intencionado de ver o documento aprovado visando gerar um marco legal para as lutas futuras - vêm negociando o projeto com um certo pragmatismo que incomoda e assusta. Incomoda porque tais organizações falam em nome de um movimento que a duras penas vem tentando criar uma unidade mínima naquilo que lhe é mais caro: a luta contra a hegemonia racial branca.
O movimento negro é múltiplo em suas dimensões políticas, e é bom que se mantenha assim. Mas ao se outorgarem o papel de negociadores – geralmente são homens negros os portadores da voz destas entidades – da questão negra com o governo e com as forças políticas mais atrasadas, sem levar em conta o longo caminho percorrido na luta histórica, algumas lideranças negras estão jogando na lata do lixo nossa tradição radical. Assusta porque as justificativas para a concessão – cada vez maior – de pontos importantes do projeto original se dão a partir de um fatalismo esquisito, com explicações que não convencem: cuidado, o Estatuto indígena está engavetado há 15 anos; o momento atual não comporta o confronto; é hora de negociação; esse papo de radicalismo é coisa do passado; utopia não enche barriga....Seria, de fato, o fim da História? Ou há uma pobreza em nossa imaginação política?
Talvez o facão do senador Demóstenes Torres seja providencial para o nosso momento político. Não que eu comungue com a tese de que o pior Estatuto seja o melhor para nos unir – e essa não é a posição das entidades que agora negociam a aprovação do documento - , tampouco endosso a critica radical que caracteriza os líderes de tais organizações como os novos capitães do mato, mas tenho esperanças de que elas se dêem conta do suicídio político que se avizinha com a sua gradativa subordinação `as forças mais conservadoras do país e se unam ao coro daquelas que sustentam a autonomia política e as bandeiras históricas como princípios inegociáveis. Em nome de que e de quem falam tais líderes? Houve um processo amplo de discussão interna em suas respectivas entidades, como o fez corajosamente o MNU? Qual a justificativa para fazer tanta concessão em nome da aprovação de um documento que já nasce morto?
No momento, a derrota pode ser uma vitória. Se a versão anterior do Estatuto já deixava dúvidas quanto a sua eficácia no combate das desigualdades raciais, a atual já deveria estar descansando em paz. Explico: esta não é uma recusa histérica da mesa de negociação. Já aprendemos que ocupar os espaços de poder estratégicos é missão importante na luta anti-racismo e foi graças a esta estratégica que muitas entidades negras driblaram as artimanhas do nosso racismo. O que se pede é que não se perca de vista a linha tênue entre a negociação e a subordinação política. Apoiar o Estatuto como está é agredir nossa história de lutas.
Em ‘A História da Riqueza do Homem’, Léo Huberman nos conta a seguinte anedota: sabe como se caçava macacos nos tempos antigos? Os caçadores faziam buracos nos cocos pendurados nos coqueiros e enchiam-nos de açúcar. Os buracos eram feitos de forma que só passava a mão aberta do macaco. Com fome e desconfiados, os animais enfiavam as mãos nos buracos fechando-as cheias do produto. Era a hora da caçada: morriam mas não desistiam do açúcar. Pois bem, a natureza anti-negro do Estado brasileiro deveria, no mínimo, suscitar reflexões nos que agora falam em nome da causa negra.
*(In)felizmente, minha posição neste artigo não representa, necessariamente, o ponto de vista das entidades das quais faço parte.
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